A casa falhada

22/02/2022

Por Amilcar Bettega*

Foto por Sebastian Herrmann

 

A casa ficou ainda mais fincada na minha memória depois que a vi assim, com aquela falha no meio.

Como se não bastasse o tempo decorrido e esses olhos de adulto dando outra dimensão às coisas que a infância guardara, havia aquele buraco no corpo da casa.

De início, toda a casa se mostrava como uma lembrança quase fiel do que ela havia sido, reconhecível numa integridade mais ou menos preservada, já sem nenhuma poesia, é claro, e um tanto invadida pela grama e ervas daninhas que o abandono foi deixando entrar. Mas ainda estava ali o seu corpo, as suas peças da frente: a despensa, o longo corredor, o quarto de costura e a sala de estar.

Mas de repente, antes de eu passar às peças dos fundos – onde ficavam a copa, o banheiro, a cozinha e a área externa que vinha logo após a cozinha e que se abria para o pátio e o pomar –, bem ali no meio: aquele vazio. Ali, onde sempre soube ser o “quarto de hóspedes”, havia agora um quadrilátero de grama alta e muita sujeira, a céu aberto. Das quatro paredes da peça, a externa não existia mais, apenas a sua lembrança sobre a linha do alicerce quase tomado pelo capim. Também o telhado e o assoalho ali tinham desaparecido, ainda que no restante da casa eles se mantivessem, danificados, maltratados como é normal em uma casa abandonada, mas continuavam lá.

Apenas aquele quarto tinha sido amputado da planta da casa, como que recortado com a tesoura num brinquedo infantil.

E este é o ponto. Agora que relembro tudo isto, agora que volto a pensar nesta casa mutilada, vejo-a sempre um pouco do alto, de uma perspectiva mais elevada, como se estivesse olhando uma planta baixa em escala natural, vejo-a de um lugar de onde nunca a vi.

Pode até ser que o reencontro com cada peça daquela casa, inclusive com a que faltava, não tenha se dado na ordem como descrevi, alguns parágrafos acima. Embora seja muito provável que tenha sido exatamente assim: da frente em direção aos fundos. Da despensa à cozinha. Mas o que é certo é que nunca a vi de cima como agora a vejo, no momento em que a descrevo. E também a cada vez que fecho os olhos e relembro esta visita.

À ideia de um corpo a que tivessem amputado um membro, agrega-se a presença quase física da doença. Algo de muito grave havia atingido aquela parte da casa, a tal ponto que fora preciso apagar a peça e, com ela, qualquer resquício da praga que porventura tivesse se incrustado nas paredes, em seus tijolos, na madeira do assoalho e do teto.

Esta casa, enfim, foi uma das casas da minha infância. Ficava em uma zona rural de uma cidade ela mesma quase rural. Foi a casa de minha avó. Os dois, avô e avó, sempre viveram lá, naquele tempo em que eu corria com meus primos pelo pátio que se confundia com o campo. Mas nós a chamávamos a casa da vó.

Depois, ela (a casa) foi outra coisa. Aí já é após a morte do meu avô. Minha avó foi para um apartamento na cidade, no mesmo prédio em que morávamos. Ela (a casa) ficou com a família por anos e conviveu com outros hóspedes. Entre eles um tio, distante da mulher e dos filhos, que para lá foi viver sozinho. Era dado à bebida e à melancolia. Um dia, ambas passaram das medidas. Os vizinhos mais próximos ficavam a várias centenas de metros, mas alguns dizem que até hoje escutam o estampido ecoando pelo mato de eucaliptos.

É desse tempo a doença que à casa custou um membro, o completo abandono e, quem sabe, hoje, a fama de mal-assombrada.

Eu nunca deveria ter retornado àquela casa. Poderia ter ficado com ela íntegra na minha memória doce daqueles anos sem doença. Os espaços da infância deveriam ser interditos ao retorno depois de muito tempo de ausência.

Agora me persegue a imagem daquela falha no meio, aquele vazio.

E como se não bastasse, vejo-a de cima, como se eu estivesse flutuando, sem peso, sem forma, sem nada.

 


 

AMILCAR BETTEGA nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. Doutor em letras pela Universidade Sorbonne Nouvelle, também atua como tradutor. É autor de O voo da trapezista (prêmio Açorianos), Os lados do círculo (prêmio Portugal Telecom), Barreira (finalista do prêmio São Paulo) e Prosa pequena, além deste Deixe o quarto como está, lançado em 2002, vencedor do prêmio Açorianos e menção especial do prêmio Casa de las Américas, em Cuba. Em 2010 foi escritor residente do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Seus livros e contos foram publicados em países como Portugal, Espanha, Itália, França, Estados Unidos, Luxemburgo, Suécia e Bulgária.
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