A glória e seu cortejo de horrores

10/11/2017

Por Reinaldo Moraes

Detalhe da capa de A glória e seu cortejo de horrores.

Fim foi o começo da carreira literária de Fernanda Torres, que há trinta e cinco anos mantém uma carreira de sucesso no teatro, no cinema e na televisão. Fim vendeu mais de 180 mil exemplares e teve direitos de publicação adquiridos na França, na Holanda, na Itália e em Portugal. Agora, quatro anos após sua estreia na literatura, Torres volta às livrarias com A glória e seu cortejo de horrores, onde monta um retrato marcante da televisão, da sociedade e do teatro brasileiros. 

O livro acompanha as desventuras de Mario Cardoso, um ator de meia-idade, desde os dias de sucesso como astro de telenovela até o total declínio quando decide encenar uma versão de Rei Lear — e as coisas não saem exatamente como esperava. A história atravessa diversas fases da carreira de Mario (e da história recente do Brasil), suas lembranças de juventude no teatro político, a incursão pelo Cinema Novo dos anos 1960, a efervescência hippie do Verão do Desbunde, o encontro com o teatro de Tchékhov, a glória como um dos atores mais famosos de uma época em que a televisão dava as cartas no país. A glória e seu cortejo de horrores é um painel corrosivo de uma geração que viu sua ideia de arte sucumbir ao mercado, à superficialidade do mundo hiperconectado e à derrocada de suas ilusões.

A seguir, leia o texto de Reinaldo Moraes escrito para a orelha do romance. A glória e seu cortejo de horrores chega hoje às livrarias. 

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Um jovem aspirante a ator no Rio de Janeiro dos anos 1960 dá seus primeiros passos na profissão em peças engajadas na luta político-cultural contra a ditadura militar e o capitalismo selvagem que a sustentava no Brasil. Na verdade, ele está mais interessado nas mulheres do elenco e da plateia, e na aventura do teatro em si, do que em revolução de qualquer espécie.

É assim que começa a epopeia de Mario Cardoso, protagonista do novo romance de Fernanda Torres. Do esquerdismo delirante e involuntariamente cômico das produções mambembes da época, ele pula para o palco do desbunde, ingressando no elenco de Hair, ao lado de ninguém menos que Sônia Braga. Tudo é divertido e precário na hippielândia vanguardista dos anos de chumbo, com altas doses de sexo, drogas e o mais florido narcisismo.

Depois de montagens consagradoras de Tchékhov e Plínio Marcos, e de uma incursão pelo Cinema Novo pelas mãos de um diretor megalômano que tenta transpor Grande sertão: veredas para a grande tela, abrem-se para Mario as portas do principal canal brasileiro de televisão do país. Não demora para ele alcançar a glória, com direito a intensa tietagem nas ruas e uma descomunal inflação do ego.

Mas tudo muda quando Mario decide pular fora da tevê e se aventurar por um Rei Lear catastrófico, que arrasa com sua reputação artística e o soterra em dívidas. Para piorar, sua mãe, viúva, está perdendo a memória e a razão, e tudo parece naufragar.

Mescla eletrizante de comédia de erros com a velha e nem sempre boa vida como ela é, A glória e seu cortejo de horrores é um painel corrosivo de uma geração que viu sua ideia de arte sucumbir ao mercado, à superficialidade do mundo hiperconectado e à derrocada de suas ilusões. Tudo isso com doses generosas de um humor afiado e meio amargo, espécie de marca d’água da autora desde o seu romance de estreia, o surpreendente Fim — em que, por sinal, Fernanda já havia experimentado se pôr na pele de narradores com testosterona esguichando pelas ventas, exercício de alteridade da qual não muitos escritores podem se gabar de ter levado a bom termo.

Em suma: A glória e seu cortejo de horrores gruda na mão, no bestunto e no coração da gente, de tal jeito que o único consolo possível, ao chegar à última página, é correr de novo para a primeira e reler o livro todo, como, confesso, eu mesmo acabei fazendo.

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Reinaldo Moraes nasceu em São Paulo, em 1950. Estreou com Tanto faz (1981) e depois Abacaxi (1985) - reeditados em 2011 num volume único, pelo selo Má Companhia. Passou dezessete anos sem publicar ficção, até lançar o romance juvenil A órbita dos caracóis (2003), os contos de Umidade (2005), a história infantil Barata! (2007) e o romance Pornopopéia (2009).

 

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