"A hora do sétimo anjo", de Erico Verissimo: o livro em apocalipse (parte 2)

18/09/2017

Por Beatriz Badim de Campos 

Leia aqui a primeira parte.

Sempre que iniciava um livro, Erico Verissimo, antes de qualquer outra atitude, desenhava as personagens que habitariam aquela nova casa narrativa, dava a elas forma física, como que a tentar conversar, cara a cara, com elas. Ao lado de cada esboço, atribuía características de suas personalidades e dados de suas biografias. Como Verissimo costumava salientar, muitas vezes o destino traçado para as personagens extrapolava os limites criativos do autor e elas trilhavam seus próprios caminhos. Em A hora do sétimo anjo não foi diferente.

Nas folhas avulsas que compõem um dossiê desse romance inacabado, escrito entre 1966 e 1975, bem como nos três cadernos de anotações de Verissimo para este projeto, encontramos o desenvolvimento do enredo do livro, a justificativa para o título e as decisões que o autor se via desafiado a tomar frente a seu texto; questões que tratamos na primeira parte deste artigo.

É interessante observar nesse material deixado pelo autor que, no trabalho de composição do enredo, o jogo artístico autor-personagem é privilegiado. Tanto que existe um espelhamento entre ambos questionando os limites entre criador e criatura. Como exemplo disso temos Mafra-Pomar, protagonista do livro, compartilhando com Verissimo o ofício de escritor e também a natureza da produção literária a que se dedicavam no momento: Mafra-Pomar pretende escrever suas memórias, o que Verissimo também estava fazendo, em Solo de clarineta (1973). Este fato fez com que Verissimo temesse se parecer com a personagem, pedante membro ficcional da Academia Brasileira de Letras.

Essa discussão crítica sobre a questão autoral e literária é uma constante na obra verissiana, por meio de personagens que são escritoras e que encontram na literatura a sua reflexão. Em Caminhos cruzados (1935) e em Um lugar ao sol (1936) há a personagem Noel, que escreve seu livro também intitulado “Um lugar ao sol”, partilhando a voz autoral com Erico Verissimo. Este é um exemplo dentre tantos presentes no projeto literário do escritor gaúcho.

Isto confirma a ideia de que a literatura de Erico Verissimo constitui um projeto engajado com o seu fazer artístico e estético. Assim, temos o que chamamos de “saga literária”, ou seja, cada romance só se define plenamente enquanto narrativa quando em diálogo com outros. Nessa dinâmica, as personagens têm seus discursos constituídos quando combinados com os de outras personagens rompendo as barreiras entre os textos.

Assim, podemos dizer que cada romance, na verdade, é um capítulo do projeto literário de Verissimo. Impossível, pois, estabelecer os limites entre os romances de sua obra, uma vez que eles estão de tal forma tecidos entre si que somente juntos é que produzem sentidos mais amplos.

Em uma das folhas do dossiê de A hora do sétimo anjo datada de 1975, ou seja, no mesmo ano da morte do autor, há uma anotação, originalmente em inglês, de Verissimo para ele mesmo, validando a ideia de que o projeto deu trabalho até o final de sua vida: “É irresponsável da sua parte, inclusive tolo desistir do projeto desta novela”. Havia, assim, atestada a preocupação do escritor em prosseguir com os planos para o livro.

Apesar de não abandonar A hora do sétimo anjo, talvez Verissimo não tivesse consciência da grandiosidade da narrativa que estava em suas mãos. Talvez ele sentisse os entraves do texto de forma mais contundente do que sua própria ação criativa. Talvez. De todas as formas, estamos diante de um projeto revelador, apocalíptico, podemos dizer. Porque é tempo de acreditarmos no humano e na eternidade do amor e da solidariedade por meio da literatura, como nos confidencia Verissimo em um de seus cadernos de anotações. Quem sabe não era essa a grande revelação de sua obra. Já é hora, pois, de escutar o sétimo anjo.

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Beatriz Badim de Campos é doutoranda e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora do livro Caminhos cruzados e um Lugar ao Sol: o projeto literário de Erico Verissimo (EDUC, 2016).

 

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