A minha época escassa

Carol Bensimon

Pôster de livros clássicos da Pop Chart Lab. 

Um grande e ambicioso projeto do SESC, Arte da Palavra, me levou ao Mato Grosso do Sul na semana passada. A frustração foi não ter visto nenhum jacaré em Corumbá – apenas uma boca imensa putrefata e virada pra baixo, uma linha de pesca no pescoço, os indícios de algo que deve ter sido feito em uma dessas noites selvagens no rio Paraguai. Eu e o colega André Timm fomos a escolas e participamos de debates à noite. Como é comum em bate-papos, houve algum momento (ou vários) em que fomos indagados sobre as origens dos nossos hábitos de leitura. Essa é sempre uma questão que abre um portal para uma época já distante, lembrando inevitavelmente que as coisas mudaram e que minha experiência é um registro de uma época escassa e analógica.

Devo dar uma ideia, para a ala jovem, de que eles são sortudos por viverem no momento em que vivem. Embora eu venha de uma família com uma boa situação financeira e que sempre viu nos livros um alto valor simbólico, a escassez a que me refiro era a escassez de informação e de lugares para comprar livros. Tanto é que a Feira do Livro de Porto Alegre era “a" ocasião para que eu comesse pipoca com quadradinhos de queijo (uma coisa extinta, e eu não sei onde ficava aquele cara pelo resto do ano) e fizesse um pequeno estoque de leituras infantis e juvenis para muitos meses. Estou lembrando agora de um livro que mostrava as coisas por dentro: castelo medieval, transatlântico, avião, arranha-céu. Eu sempre procurava o banheiro. O banheiro era uma parte engraçada daqueles desenhos de grandes obras de engenharia seccionadas. Estou lembrando dos livros-jogos de uma coleção chamada Salve-se Quem Puder. Por essas e por outras, eu queria ser detetive.

O que eu sentia nessa época, e depois na adolescência, é que era difícil saber o que ler. Eu não podia contar com a indicação de irmãos – não tinha nenhum – e também não muito com as dos pais e avós – que me jogaram para a literatura policial e isso era o.k., mas o próximo passo deles seria, por certo, me oferecer Balzac e Victor Hugo, e eu achava que ainda não era a hora para isso. Os amigos mais próximos estavam em uma onda Neil Gaiman, que não era exatamente a minha praia. A escola foi legal comigo e me deu algumas dicas, mas o sentimento geral naqueles loucos anos noventa era que eu tinha que entrar na Livraria Sulina do Shopping Iguatemi e me atracar num livro totalmente por acaso, jogando todas as minhas fichas em uma aposta arriscada, tipo um livro noruguês contemporâneo com duas meninas nadando na capa.

Faltava uma curadoria. E é por isso que tendo a enxergar os jovens de hoje como mais sortudos. Curadoria é o que não falta. A internet é a recomendação por excelência, e isso inclui desde o amiguinho que você fez a 10.000 quilômetros de distância com gostos semelhantes aos seus até seus vlogs favoritos que dão dicas de livros, e que daí te levam a outro, e a outro, e a outro. Não só as dicas pululam como também a necessidade de abraçar listas e metas: toda a virada de ano, os usuários do Goodreads acham que serão pessoas melhores se dobrarem o número de romances devorados, e nem os que rigorosamente se opõem a essa transformação de leituras em coeficientes podem dizer que não sentem uma enorme satisfação ao marcarem um livro como “lido”; e depois há todas aquelas listas sobre livros “essenciais" do ano, deste século, do século passado etc., com curadorias diversas e que às vezes geram a necessidade/ansiedade da comparação.

E há listas que viram peças de design. Fetiche puro. Tipo esse pôster que eu comprei e que você deve raspar com uma moedinha os livros clássicos já lidos. Agora o que penso todo dia é: raspar ou não raspar? Estragar a harmonia? Prescindir do vidro? O pozinho dourado vai ficar preso à moldura?

Pensando bem, quem sabe tenhamos sido privilegiados em nossa escassez.

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

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