A pele que ele habita

19/06/2017

Por Olivia Byington

Foto: Bob Wolfenson

Quando a consulesa francesa Alexandra Loras foi convidada a ocupar o mais alto cargo do consulado de São Paulo, sonhava encontrar no Brasil a famosa democracia racial propagada por tantos brasileiros e estrangeiros. Decepcionou-se redondamente. Alexandra, que é negra, conheceu a amarga face oculta dos brasileiros em relação às pessoas de melanina acentuada, que são a maior parte da nossa população.

No livro Na minha pele, Lázaro Ramos escrutina o Brasil de hoje enquanto narra com charme e afeto a sua história. Aos quase quarenta anos, o ator tem uma carreira brilhante, divide o teto com a deusa Taís Araújo e tem dois filhos cheios de saúde. Mora numa bela casa no Rio de Janeiro, escolhe os trabalhos que quer fazer e, além de estar no topo da lista dos melhores atores da atualidade, está também na lista dos mais amados pelos colegas e pelo público.

Em momento algum do parágrafo acima precisei dizer que Lázaro é um ator negro. Mas o livro é sobre isso. É sobre a construção da sua consciência, da sua identidade e praticamente um manual para atrair a empatia do leitor com as questões raciais.

Lázaro nasceu num lugar especial, onde a maioria absoluta da população à volta era negra. Sua segurança e amor próprio me parecem vir daí. Na ilha de Paty, na Bahia, ele não conheceu a discriminação nem o preconceito na infância. Porém, com a mudança para Salvador, assim como aconteceu com a consulesa Alexandra, Lázaro entrou em contato com a verdadeira face brasileira. Aquela em que a empregada doméstica é parte da família, mas que na primeira oportunidade é posta no seu devido lugar, que é: a cozinha. Numa cena de infância, Lázaro brinca com os netos da patroa da mãe e é flagrado junto às outras crianças fazendo bagunça na cama da avó.

— Tá fazendo o que aí, menino?

A frase curta dita com voz ríspida foi suficiente para despertar no menino a afirmação incômoda e a verdade encoberta — “Você não é da família coisa nenhuma, aqui não é o seu lugar”. E, afinal, qual seria o lugar do menino?

“Somos todos mestiços” é a fala preferida de quem não quer encarar a discriminação nossa de cada dia. Se você, de pele clara, é tão mestiço quando diz ser, me conte então quando foi que, achando que você estava ali a serviço, te entregaram um casaco para guardar na entrada de um evento social? Ou quando foi barrado numa fila VIP de avião? Ou quando foi obrigada a explicar que não era a babá do seu filho? Que tal ter que informar na portaria do clube que seu nome está na lista de convidados e não na lista das babás que, aliás, devem estar vestidas de branco? Dizer que somos todos mestiços é o mesmo que dizer que somos todos paralímpicos, como na desastrosa campanha da Rio 2016. A afirmação nega as agruras dos que realmente tem uma questão difícil a lidar na prática, anula a luta de milhões que sofrem discriminação na pele e desconsidera os que clamam por leis de reconhecimento e reparo dos erros do passado.

Fui vestindo a pele negra de Lázaro, reconsiderando, do meu lugar de fala, as falsas cordialidades, matutando sobre a mentalidade escravagista em que fui criada e educada, fui ampliando as dúvidas que tenho de como me situar e como apropriar-me da questão ética relacionada a discriminação e ao racismo. A luta dos negros americanos é exemplar no mundo inteiro e quase todo filme e literatura que conhecemos são importados de lá. No Brasil, como nunca houve o escancaro da segregação americana, não houve também um marco histórico, como a conquista dos direitos civis em 1964. O empoderamento dos negros aqui vem se dando aos trancos, com a ínfima presença de homens e mulheres negras no mundo das ideias, na política e no cinema. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. O dado alarmante nos dá ideia do atraso no andamento do processo de igualdade por aqui.

Certa vez, Lázaro foi abordado por policiais armados quando entrava num caixa eletrônico às onze da noite para sacar seu dinheiro. Vivências como essa são a razão maior da sua preocupação concreta com a juventude e a liberdade dos seus filhos. Em breve eles terão idade para andar por aí sem o olho atento dos pais e é aterrorizante imaginar que possam passar por constrangimentos assim somente pela cor das suas peles.

O livro de Lazaro é perfeito para você sacar a cada vez que alguém te disser que não existe racismo no Brasil. 

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Olivia Byington iniciou a sua carreira como cantora e compositora no final da década de 1970. Gravou seu primeiro disco em 1978 e, desde então, conquistou uma sólida carreira musical, realizando inúmeros shows no Brasil e no exterior. Em junho de 2016 lançou pela Objetiva o livro O que é que ele tem.

 

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