A pobreza intelectual

08/01/2021

 

"A pobreza intelectual e emocional proveniente da leitura exclusiva das histórias em quadrinhos não pode ser eliminada num abrir e fechar de olhos. Isso exige paciência e, ainda, a inclusão gradual de muitas espécies de leitura, para dar à criança o equilíbrio tão desejável.”

O trecho vem do volume 15 da enciclopédia O Mundo da Criança, publicada pela Editora Delta entre 1954 e 1959. Vem de um texto de sete páginas sobre os quadrinhos, com orientações aos pais sobre como lidar com os hábitos de leitura infantil. Faz parte de uma seção maior, “O mundo chega até nossos filhos”, que também tem capítulos sobre “rádio e televisão”, cinema e jornais.

O parágrafo que começa falando em “pobreza intelectual” termina com a seguinte frase:

“Ela [a criança] poderá, então, apreciar o mundo através de muitos ângulos e desenvolver uma compreensão autêntica, pois sua visão não será deturpada."

“Visão deturpada”, falta de “equilíbrio”, “pobreza intelectual e emocional” e outros termos fazem quem lê quadrinhos torcer o nariz. Há um subtítulo no texto que diz Como defender-se das histórias em quadrinhos. Na legenda da foto acima, fala-se em evoluir “das histórias em quadrinhos para uma leitura mais valiosa”.

Mesmo com estes momentos discutíveis – que eu acredito que foram propositais, mas que são apenas ganchos para dizer outras coisas –, o texto me chamou atenção por não ser a típica condenação dos quadrinhos que se via nos anos 1950. É um texto ponderado, esclarecido e equilibrado quanto aos quadrinhos e sua parte no desenvolvimento das crianças como leitoras, numa época em que pouco se via essa ponderação.

A típica condenação dos quadrinhos nos anos 1950 é bem conhecida (escrevi sobre ela em três momentos aqui no Blog). Começou na década anterior, o auge dos gibis nos Estados Unidos. Pais, professores e padres começaram a tratar as revistinhas como praga, pois era difícil encontrar uma criança norte-americana sem gibi na mão. Veio o livro do Dr. Fredric Wertham, A Sedução do Inocente, denunciando o quadrinho como escola da delinquência juvenil. Houve audiências no Senado, paróquias promoveram fogueiras de gibis e as editoras criaram a autocensura com o nome Código de Ética.

O movimento chegou no Brasil, como documenta Gonçalo Junior em A Guerra dos Gibis. Os artigos de Wertham saíram na Reader’s Digest nacional, autoridades da cultura e da política se pronunciaram contra gibis. Também tivemos fogueiras. Há vestígios da visão dos quadrinhos como subliteratura até hoje.

E foi nesse contexto que saiu o texto da Mundo da Criança. A enciclopédia era tradução e adaptação de uma versão norte-americana, a Childcraft, que começou a sair lá fora nos anos 1930. Tinha contos de fadas, poesia, trechos de literatura, lições de matemática e ciências, tudo com a chancela de educadores e psicólogos. A versão de 1954 trouxe, entre outros acréscimos, quatro volumes para os pais, com sugestões para a criação dos filhos. Foi a base da versão brasileira.

O texto sobre quadrinhos é creditado a uma autora chamada Arensa Sondergaard, da qual só encontrei referências como escritora de livros infantojuvenis dos anos 1940: História dos Estados Unidos para Gente Moça, a coleção Minha Primeira Geografia, entre outros.

A sociologia do leitor de quadrinhos que Sondergaard descreveu nos anos 1950 – sobre escapismo, sobre colecionismo, sobre adaptações literárias, inclusive sobre “pobreza intelectual e emocional” – se encaixaria em muitos pontos na sociologia do leitor de quadrinhos de hoje.

O trecho sobre colecionismo é exemplar:

"Entre adultos, há colecionadores de objetos chineses, de porcelanas, de cristais, de selos e objetos similares, que os exibem aos amigos. Da mesma forma, os jovens leitores de histórias em quadrinhos, muitas vêzes, conseguem manter seu prestígio à custa dêsse tesouro. Nesse caso, êle coleciona mais do que lê. Talvez sua variedade seja a maior da vizinhança; talvez seja êle o possuidor da maior quantidade de uma determinada espécie; e, simplesmente, talvez seja a sua pilha, que vai do chão ao peitoril da janela, a maior de tôdas. Qualquer que seja o caso, êle seguiu êsse caminho para conseguir popularidade e ser aclamado pelos amigos."

Guardadas as proporções, é o que hoje se chama de lombadeiros, ou de lombadeirismo.

Sobre adaptações literárias em quadrinhos – uma moda editorial forte nos anos 1950 para conferir prestígio aos gibis, que voltou com força ao Brasil dos anos 2000-2010:

"A criança que tiver escutado uma narração completa, com todo o seu sabor literário, não apreciará uma síntese ou uma história em quadrinhos, pobremente ilustrada, baseada no mesmo clássico. O fato de que uma história em quadrinhos seja baseada num clássico não a recomenda necessàriamente."

Parece que Sondergaard leu Wertham e outros autores de sua época. Wertham chamava todos os gibis que, na sua ótica, incentivavam a delinquência juvenil de crime comics, mesmo que não trouxessem histórias de crimes ou policiais.

“Por que alguns jovens transgridem leis, juntam-se a grupos de transviados ou assumem outra qualquer forma de conduta delinqüente?”, pergunta Sondergaard. Ressentimento, pertença, aceitação, ela responde. Os distúrbios de comportamento podem ser inspirados por gibis, mas são distúrbios que já estavam ali – mesmo que não tivesse acesso a gibis, a criança problemática ia tirar seu mau comportamento da família, da rua, dos amigos. “Não se pode dizer que as revistinhas tenham sido a causa dessa conduta”.

Wertham dizia que as crianças copiavam crimes cometidos nos gibis. Sondergaard: "ninguém recearia que as crianças empurrassem alguém num forno, depois de ter ouvido como Joãozinho fêz com a perversa feiticeira da história 'Joãozinho e Maria'".

As crianças têm pesadelos com os gibis escabrosos? Sondergaard: "as crianças suscetíveis ao mêdo assustam-se também com histórias de boa literatura".

Devia-se proibir quadrinhos? "Usualmente, os livros proibidos despertam um interêsse muito maior do que se estivessem normalmente ao alcance dos leitores."

Há defeitos no texto. Um deles é tratar a leitura de quadrinhos como uma experiência exclusivamente infantil. Adultos sempre leram quadrinhos, desde os jornais. Mas dá para relevar: Sondergaard estava publicando em uma coleção sobre desenvolvimento infantil e o leitorado de mais idade não estava no seu recorte. Como o texto fazia parte de uma coleção de literatura em prosa, também é de se esperar trechos como "O prazer encontrado na experiência com outras leituras irá, aos poucos, abafando o interêsse pelas histórias em quadrinhos".

Mas é, sim, um texto ponderado. Mesmo quando fala em “pobreza intelectual e emocional proveniente da leitura exclusiva das histórias em quadrinhos”. Concordo com a autora graças à palavra “exclusiva”. Só ler quadrinhos, só assistir seriados, só jogar videogame, só ouvir música ou, sim, só ler literatura causa pobreza intelectual e emocional em qualquer pessoa. Tal como só comer brócolis mata.

É a ponderação que falta, ainda hoje, quando se discute games, celulares, redes sociais, televisão e, às vezes, quadrinhos. Há conteúdo problemático, sim, e ficar vidrado em qualquer dessas coisas é prejudicial. Condenar uma mídia inteira – quanto mais proibir ou censurar uma mídia inteira – não tem cabimento.

Sondergaard conseguiu ser ponderada sem ignorar o discurso da época. Trouxe esse discurso para o texto e conseguiu destrinchar as invectivas e o pânico moral, chegando num argumento mais complicado, mas mais pragmático. “O mundo chega até nossos filhos”, como diz a seção da enciclopédia em que ela escreveu, e não dá para barrar esse mundo. Você tem que lidar com o mundo.

Eu adoro essa parte: "Eis um bom plano para os pais: gastar menos esfôrço em preocupar-se com as histórias em quadrinhos e mais em ocupar o tempo das crianças com atividades benéficas, mas igualmente atraentes".

* * *

Muitos agradecimentos ao pesquisador Luiz Claudio Garcia, que reencontrou o texto e gentilmente publicou tudo no Twitter. Ao final do fio há o texto completo de Arensa Sondergaard na Mundo da Criança:

 

 

 

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

 

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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