Anjo vegetal

“Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza”. Tal é o conselho de Drummond em “Fala, Amendoeira”, crônica em que descreve um diálogo imaginário, travado no dia do equinócio, com sua árvore preferida, seu “anjo vegetal”.
Começo o ano pensando nele ao voltar para o apartamento onde morei há dez anos e deparar com a minha “árvore da guarda”. Abro a janela e vejo: está lá o pinheiro plantado na área de trás do prédio. Com 25 metros de altura, ele alcança os andares mais altos e cobre toda a vista, é imenso e frondoso.
Reparo que ele está diferente de quando me mudei dali, mais esparramado? Passo uns dias prestando atenção nos seus movimentos. Na memória era mais esbelto, talvez o peso dos anos tenha se abatido sobre ele, ou será apenas a lembrança que deforma as coisas?
No dia seguinte vejo uns pequenos frutos, parecem flores cor de rosa choque, mas que desaparecem antes que eu vá embora; e, em poucos dias, a árvore começa a perder o verde. Mesmo sendo janeiro, ela vai outoneando...
No março longínquo em que a amendoeira de Drummond fala, ela está avançando para o outono e diz para o cronista que, nele, o outono era mais um “estado de alma” que uma estação.
Talvez meu pinheiro tenha sintonizado com o estado de alma desses tempos e, por isso, aparente mais invernal e sombrio (embora em pleno verão carioca). Observo que ele está um pouco inclinado, como se estivesse lentamente tombando. Os frutos cor de rosa poderiam ser uma espécie de canto do cisne? Temo por ele, começo a achar que chegou sua hora.
*
Uma amiga, a poeta e artista Katia Maciel, me escreve do Prospect Park, onde está morando, para mandar notícias do que deseja para o novo ano:
“Um parque da esperança”, diz ela no meio da neve, porque prefere traduzir prospect por esperança.
*
Tento pensar no meu reencontro com o pinheiro: que ele possa ser um parque da esperança, mesmo que esteja em seu mais longo e definitivo inverno; que possa ser meu anjo vegetal, proteção contra o maremoto virulento desses dias.
*
Depois de pronto esse texto, vou reler o Plantio (7letras, 2019), da Katia Maciel, e deparo com um poema que diz assim:
pé ante pé
uma árvore pode ser três
uma sobe
outra desce
e a terceira
caminha
entre as outras
Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).
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