Apocalípticos ou integrados

Gosto de ler livros com marcas de uso, desde as mais simples – anotações a lápis e manchas de desgaste – às mais violentas – anotações a caneta, marcas de café e gordura, dobras e rasgos. Eu mesma faço (fazia) tudo isso com gosto. Quando era mais jovem, pegava canetas de várias cores e distribuía pelas frases com exclamações de amor ou ódio, sublinhados fortes, círculos, quadrados, desenhos laterais e associações livres. Forçava as duas metades para trás para ler melhor, marcava as páginas com uma dobrinha no alto. Lia na praia, cozinhando e comendo. Livros lidos em épocas diferentes têm marcações discordantes e que discutem entre si.
Tudo isso ficou para trás, porque em casa meu marido é partidário da atitude contrária. Só anotações com lápis fraquinho, nenhuma marca na lombada ou na capa, nunca forçar a encadernação e jamais dobrar a pontinha. De tanto discutirmos por causa disso, acabei aderindo à maioria das suas prescrições, mas não todas e não sem protesto.
Ele argumenta que quer deixar uma biblioteca impecável para o futuro e que os livros existem para ser lidos por muitas pessoas, em muitos tempos, sem a interferência dos olhares passados. Além disso, admite que tem um fetiche pelo objeto e que quer conservá-los como se guarda uma joia ou uma escultura.
Eu digo que marcas pessoais de leitura não impedem leituras futuras e, ao contrário, animam a posteridade a conhecer melhor leitores antigos, seus hábitos, preferências, comidas, bebidas, frequências. Nos museus da Europa, vi manuscritos e iluminuras medievais com o protesto de algum monge nas margens: “Não aguento mais ficar aqui”; “Estou exausto”; “Esse trabalho é desumano” e, para mim, isso passou a fazer parte do que lia, como testemunho e também como momento integrante da obra.
Livros são extensões do corpo e manipulá-los conforme o corpo age é imbuí-los e à história de presença e circunstância. Quase não sinto vontade de defender minha posição, porque ela não é exatamente uma posição; é mais uma consequência inevitável dessa extensão. Ler é um ato completo, que envolve a postura com que se lê, o que estou fazendo enquanto leio, o que lembro, o que desejo e o que as frases evocam tanto emocional como intelectualmente. Eles são também testemunhas de tempos esquecidos que, quando reabertos, são como fotografias de outras leituras, reavivando vontades e atitudes.
Gosto de imaginar leitores dos meus livros tomando café e comendo biscoitos de polvilho, que se esparramam pelas páginas, sujando personagens e cenários. Quero vê-los largados na areia e úmidos de maresia, mas sobretudo sublinhados com cores e marcados com ingressos de cinema, cartões de lojas, restos de lápis apontados e eventualmente pétalas de alguma flor. Não sei explicar por que também me atraem as pessoas que não gostam muito dos meus livros e, agora sim, tenho fetiche por marcas de desprazer ou de raiva. Na Amazon, alguns leitores chamam meus livros de “inúteis”, “presunçosos” e “herméticos” e gostaria de ver o que e onde esses leitores anotaram alguma coisa. Sinto uma comunhão com leitores de outras épocas, quando abro um livro usado, comprado num sebo, por exemplo e fico observando o nome, o formato da letra, a data e mais do que tudo, os comentários. O conteúdo do livro fica enovelado por essas múltiplas leituras e de algum modo se modifica.
Mas sei dos adeptos da integridade e sei que devo moderar minha gula. Livros intactos são mais duráveis, neutros e legíveis.
Mas tenho segredos quase invioláveis. Descendentes saberão reconhecê-los.
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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
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