Arte poética

19/01/2021

 

Livremente inspirada no projeto Inventário de destruições, de Éric Watier, e no livro Les unités perdues, de Henri Lefebvre, decidi também fazer um inventário. O livro de Watier elenca, em breves notas descritivas, artistas e escritores que já destruíram ou jogaram fora algum trabalho. O projeto saiu no Brasil como livro de artista, com tradução de Fabio Morais, pela plataforma par(ent)esis, e pode ser lido em versão work in progress neste site.

O livro de Henri Lefebvre é feito de frases curtas (às vezes, só título e autor) e reúne uma lista de objetos perdidos ou destruídos — obras plásticas, livros, filmes, cartas, enfim, a lista é mais livre que a de Watier e cada item é mais curto.

Decidi fazer um inventário cruzando um pouco as duas ideias: em parte como uma homenagem aos dois textos, em parte por curiosidade: como meus contemporâneos compõem seus trabalhos? O quanto destruir faz parte do processo? Será que já perderam algum trabalho importante? Mandei para 18 pessoas a seguinte pergunta: você já jogou fora ou perdeu algum trabalho? Três pessoas não responderam. Três disseram que iam pensar. As outras 12 mandaram respostas e histórias tão bonitas, tão cheias de detalhes e que revelam muito sobre seus processos, ainda que falem de obras ausentes. Copio abaixo quase literalmente as respostas que recebi, apenas com alguns cortes. Muito obrigada aos meus contemporâneos pelas histórias compartilhadas! Ao final, acrescentei um post-scriptum. Boa leitura!

 

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Em novembro de 2020, Carlos Augusto Lima teve o computador roubado: alguém entrou pela janela de seu apartamento à noite e furtou a mochila com o laptop, contendo todos os seus poemas, que não tinham back up. Como tinha enviado os textos mais recentes a uma amiga, ele conseguiu recuperar quase tudo, com exceção do poema longo “Amélia Earhart”, que estava em processo, sobre a aviadora americana que desapareceu em 1937 no Oceano Pacífico quando tentava realizar um voo ao redor do mundo. Antes de Amélia desaparecer, passou por Fortaleza, onde mora Carlos Augusto, e tirou várias fotos aéreas e da cidade. O poema perdido cruzava as histórias da aviadora, de Fortaleza, da família do autor.

 

Em 2015, Adelaide Ivánova escreveu um poema para o livro Martelo chamado “O aniversário ou o peixe”, sobre suicídio, mas ele acabou não entrando no livro pois para ela a questão continuava em aberto. Ela nomeou uma pasta em seu computador de “ensaios que eu devia terminar”, mas que nunca termina. Ali guarda textos inacabados e em processo, como este: “pode a subalterna fazer baderna?”. Diante desta pasta, Adelaide se pergunta, não terminar um texto é também jogá-lo fora?

 

Edimilson de Almeida Pereira escreveu um romance de formação, aos 18 anos, chamado “O homem pálido” que narrava o amadurecimento afetivo e político de três amigos: Hugo, Tadeu e Abílio. Datilografou o livro de 250 páginas ao longo de um ano em uma Olivetti Lettera, usando papel carbono para fazer duas cópias. Guardou uma consigo e entregou a outra para uma professora do ensino fundamental que o incentivou a ler e a escrever. Depois de muitas mudanças de casa, o livro se perdeu. Ele aprendeu cedo que escrever, às vezes, é não prender a história entre as mãos.

 

Paloma Vidal passou três anos escrevendo um romance que seria seu primeiro livro, mas acabou jogando fora quase todo. Um pequeno pedaço foi aproveitado e reescrito e virou um conto de seu primeiro livro, A duas mãos.

 

Rodolfo Caesar jogou fora sem dó duas músicas compostas por ele nos anos 1980 pela mesma razão: ambas tentavam ser irônicas, mas a ironia não estava evidente. As músicas mexiam com a apropriação de culturas não-europeias, a moda do “world music”. Como a ironia não estava sendo detectada, os dois trabalhos soavam exatamente como aquilo que estava sendo criticado e, por isso, foram destruídos.

 

Veronica Stigger não joga fora nada: até mesmo aquilo que achava que não daria em nada acaba entrando em algum projeto posterior. Funciona no estilo Lavoisier: nada se perde.

 

Ana Estaregui sempre joga fora poemas e trabalhos. No final de 2020 mudou de casa e, como não tinha espaço na casa nova, acabou jogando no lixo alguns trabalhos que estavam guardados. Um deles se chamava “Livro dos olhos”: era uma caixinha preta (15cm X10cm) que trazia dentro metade de uma casca de noz ao lado de uma folha seca de primavera, já desbotada. As duas tinham o mesmo diâmetro, sendo que uma parecia a versão plana da outra. Debaixo delas estava escrito: “ela fechou os olhos”.

 

Fabio Morais destrói trabalhos antigos sem dó. Com o passar do tempo, é como se os trabalhos não tivessem mais sua autoria: se nem o mundo e nem o acaso demandaram essas obras, elas se tornam sucata. Há três anos rasgou e jogou fora em torno de 50 obras que jamais expôs, gravuras e fotogravuras que estavam em umas pastas de plástico, obras produzidas entre 1999 e 2001. Foi sua mais recente destruição.

 

Em 2010, Joca Wolff leu Perros héroes, de Mario Bellatin e, ato contínuo, traduziu o livro. Meses depois surgiu um convite para publicar a tradução, mas ele revirou todas as pastas do computador e tinha perdido o arquivo. Sentou e traduziu outra vez o Cães heróis.

 

Antes de começar a escrever poesia, Alice Sant’Anna escreveu alguns contos e tinha uma ideia para um romance que chegou a 30 páginas. Era sobre um dentista na crise da meia idade que decidia fugir e virar caminhoneiro. Ela passava madrugadas pesquisando sobre casos dentários para o livro. O material se perdeu em algum HD antigo.

 

Em 2013, Ignacio Morales escreveu um poema chamado “Huachuma”, nome de um tipo de cacto que pode ser encontrado no “Camino del Choro”, trilha pré-incaica na Bolívia que ele tinha percorrido ao longo de três dias. No final da trilha, morava um eremita japonês que tinha fugido da Segunda Guerra. Quando voltou ao Chile, Ignacio escreveu o poema de dez páginas que narrava, além da viagem, o encontro com Tamiji Hanamura. Em 2017, estava no Rio e seu computador quebrou. Ele o levou a um técnico perto do metrô Cardeal Arcoverde, mas não era possível recuperar os arquivos pois havia muita poeira dentro. O poema ficou perdido naquele computador.

 

Alexandre Wagner joga fora muita coisa. Em pintura, quase diariamente. De cada seis trabalhos, destrói mais ou menos dois. Se o trabalho não deu meio certo depois de algumas camadas, não adianta continuar pintando por cima excessivamente. Prefere jogar fora e começar o mesmo trabalho de novo, pois acredita que o ponto de partida é que deve ser ruim.

 

*

ps.

Se para os artistas o gesto de destruição parece estar mais presente durante o processo (afinal trata-se de uma dimensão diferente da materialidade), já para os escritores as marcas de destruição podem não estar tão evidentes. Como costumam deixar os arquivos que não são publicados no computador (ou incorporar o gesto de “destruir” com um simples delete), as respostas apontaram mais para situações de perda de arquivos e computadores. Será que a decisão de não incluir um texto em um livro não seria também um gesto de destruição, um filtro? Um ato de jogar o trabalho na lixeira?

Depois de finalizar este texto, deparei com uma entrevista com Adília Lopes no livro Palavra de poeta, em que a entrevistadora Denira Rozário pergunta “Destrói muito o que escreve?” Incorporo a resposta dela como item final dessa lista:

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Adília Lopes destrói muito pouco o que escreve. Considera o poeta um trapeiro, no próprio lixo pode descobrir um resto de maçã que o sustenta.

 

***

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

 

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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