As cidades de Calvino

03/04/2017

 

Em abril, chega às livrarias uma nova e especial edição de As cidades invisíveis, clássico de Italo Calvino. O livro conta com oito desenhos inéditos de Matteo Pericoli realizados especialmente para a Companhia das Letras. Em As cidades invisíveis, o famoso viajante Marco Polo descreve para Kublai Khan as incontáveis cidades do imenso império do conquistador mongol. Neste livro surpreendente, a cidade deixa de ser um conceito geográfico para se tornar um símbolo complexo e inesgotável da experiência humana. "Se meu livro As cidades invisíveis continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas", diz o próprio Calvino sobre este livro.

A seguir, conheça algumas das visões que Matteo Pericoli teve das cidades de Calvino, com trechos do livro traduzido por Diogo Mainardi. 

Zemrude

É o humor de quem a olha que dá a forma à cidade de Zemrude. Quem passa assobiando, com o nariz empinado por causa do assobio, conhece-a de baixo para cima: parapeitos, cortinas ao vento, esguichos. Quem caminha com o queixo no peito, com as unhas fincadas nas palmas das mãos, cravará os olhos à altura do chão, dos córregos, das fossas, das redes de pesca, da papelada. Não se pode dizer que um aspecto da cidade seja mais verdadeiro do que o outro, porém ouve-se falar da Zemrude de cima sobretudo por parte de quem se recorda dela ao penetrar na Zemrude de baixo, percorrendo todos os dias as mesmas ruas e reencontrando de manhã o mau humor do dia anterior incrustado ao pé dos muros. Cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distingui-los da calçada. O caso inverso não é impossível, mas é mais raro: por isso, continuamos a andar pelas ruas de Zemrude com os olhos que agora escavam até as adegas, os alicerces, os poços.

Bauci

Depois de marchar por sete dias através das matas, quem vai a Bauci não percebe que já chegou. As finas andas que se elevam do solo a grande distância uma da outra e que se perdem acima das nuvens sustentam a cidade. Sobe-se por escadas. Os habitantes raramente são vistos em terra: têm todo o necessário lá em cima e preferem não descer. Nenhuma parte da cidade toca o solo exceto as longas pernas de flamingo nas quais ela se apoia, e, nos dias luminosos, uma sombra diáfana e angulosa que se reflete na folhagem.

Há três hipóteses a respeito dos habitantes de Bauci: que odeiam a terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contato; que a amam da forma que era antes de existirem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência. 

Moriana

Vadeado o rio, transposto o vale, o viajante encontra-se, subitamente, diante da cidade de Moriana, com as portas de alabastro transparentes à luz do sol, as colunas de coral que sustentam frontões incrustados de serpentina, as aldeias inteiramente de vidro como aquários em que nadam as sombras de dançarinas com adornos prateados sob os lampadários em forma de medusa. Se não é a sua primeira viagem, o viajante já sabe que cidades como esta têm um avesso: basta percorrer um semicírculo e ver-se-á a face obscura de Moriana, uma ampla lâmina enferrujada, pedaços de pano, eixos hirtos de pregos, tubos negros de fuligem, montes de potes de vidro, muros escuros com escritas desbotadas, caixilhos de cadeiras despalhadas, cordas que servem apenas para se enforcar numa trave podre.

Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, com uma figura aqui e outra ali, que não podem se separar nem se encarar.

A nova edição de As cidades invisíveis chega às livrarias no dia 6 de abril. 

 

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