As duas Lillians e o aprendizado do vasto mundo

28/09/2017

Lillian Ross.

Pesquisar para o Almanaque 1964 teve um efeito profundo em mim, do modo como pesquisas em geral têm, mas com alguns efeitos colaterais inesperados. Por exemplo: minha relação amorosa com jornais e periódicos, e o quanto eles são responsáveis pela pessoa em que me tornei. (E, se você acha impossível ter uma relação amorosa com um periódico, é porque nunca passou a noite em claro na Praça General Osório, em Ipanema, levando o vento gelado do mar na cara e nas canelas, esperando a chegada, na banca ali da esquina com a Jangadeiros, dos jornais e revistas do dia, para ler seu nome em letras impressas, debaixo do título de uma matéria.)

Na casa onde eu nasci e cresci, em Ipanema, chegavam, todos os dias, cinco ou seis jornais e, todas as semanas, uma meia dúzia de revistas nacionais, mais a Life, Time, Paris Match, Saturday Evening Post, National Geographic e Popular Mechanics, que meu pai e meu avô traziam “do centro da cidade”. E, assim que aprendi a ler, eu lia todos. Lia até os que eu não deveria ler, que meus pais escondiam e grampeavam as folhas.

Na pesquisa para o Almanaque, essas páginas começaram a dançar na minha cabeça, vivas de novo, falando comigo como falavam nas manhãs de sábado quando ninguém na casa tinha acordado ainda e eu descia pé ante pé para a sala de estar, me aninhava na poltrona, que em teoria pertencia à matriarca, minha avó, e aprendia o que era o mundo, narrado por essas vozes que vinham das páginas e sujavam minhas mãos.

E eis uma das primeiras lições: o mundo era descrito por homens. Aliás, o mundo girava nos atos e decisões de homens, descritos por outros homens.

Rapidamente aprendi a admirar alguns desses homens – Alberto Dines, Júlio Hungria, José Carlos Oliveira, Ely Azeredo, Paulo Francis, Nelson Motta, Torquato Netto, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Márcio Moreira Alves, Carlos Heitor Cony. Mas eu buscava as mulheres. Onde estariam as mulheres? Eu crescia e virava mulher numa casa repleta delas, quase todas fortes, decididas, fabulosas mulheres, mas não as achava nas páginas dos meus amores. Só se eu fosse para o outro caderno, para as folhas finais – aí eu encontrava mulheres, mas elas descreviam coisas de pouco ou nenhum interesse para mim. Era um mundo pequeno, esse – tecidos e batons e perfumes e receitas de biscoito –, comparado com o vasto mundo dos homens, descrito por homens.

Foi quando eu descobri, em rápida sequência, duas Lillians. A primeira, perdemos recentemente: Lillian Ross, a quem, coletivamente, devemos algumas das maiores e melhores páginas do jornalismo do século XX e a quem eu, individualmente, devo a possibilidade de que, algum dia, eu também pudesse descrever o mundo, o vasto mundo habitado por todos os tipos de mulheres e homens.

Onde li Lillian Ross? Em alguma biblioteca, possivelmente a do colégio, que era meu refúgio mais frequente, e possivelmente em um dos seus primeiros livros ou em alguma coleção encadernada da New Yorker (fazia-se muito isso, no mundo do século XX: encadernar revistas). Li em inglês, porque eu estava determinada a melhorar meu vocabulário, e porque fiquei absurdamente fascinada com a ideia de uma mulher estar sendo publicada numa revista desse porte, conversando com pessoas como Ernest Hemingway e J. D. Salinger (que eu também lia...) e narrando coisas do mundo grande dos homens, onde moravam a política, a economia, as ideias e as ciências. E havia algo mais: o texto, o texto que não hesitava, não passeava por outros caminhos, era exato e ao mesmo tempo sedutor, econômico nos adjetivos, generoso nos verbos.

Cada vez que, em alguma aula ou programa de TV ou coisa parecida, alguém vinha deitar falação sobre atributos masculinos e femininos e suas especificidades ordenadas e imutáveis, eu pensava em Lillian Ross. Seríamos, nós duas, uma nova forma de homem? Seria o nosso cérebro uma anomalia da natureza, determinado, masculinamente, a entender e narrar o mundo vasto e complicado, lá fora, além da cozinha, da igreja, do salão de beleza?

E então a segunda Lillian entrou na minha vida, chutando o pau da barraca, de vez: Lillian Roxon, que, creio, é um dos primeiros jornalistas de rock do mundo, em qualquer gênero. Nascida na Itália numa família de imigrantes ucranianos, Roxon cresceu na Austrália e fez carreira nos Estados Unidos, primeiro em San Francisco, depois em Nova York, cobrindo os primeiros passos do que viria a ser a grande reviravolta cultural dos anos 1960.

Roxon entrou na minha vida quando, recém-chegada na adolescência, descobri sem sombra de dúvida que não gostava da música dos meus pais e dos meus primos mais velhos, e que a grande novidade de Beatles, Rolling Stones, Jimi Hendrix e The Who é que falava ao meu coração. Muito tempo depois fui saber que esse tinha sido exatamente o mesmo trajeto de Roxon – com a vantagem dos 20 anos na minha frente, mais essa mistura de coragem e insolência que, eu saberia logo, era essencial para seguir suas pegadas.

Lembro com grande clareza a tarde de sol, no quartinho de empregada que tinha virado minha sala de estudo, um LP dos Beatles na “sapateira” – uma vitrola portátil, verde-garrafa, que era meu fio-terra com o mundo no qual eu queria viver – e eu lendo, boquiaberta, uma matéria de Lillian Roxon na Circus, uma revista norte-americana que começou como bobagem teen mas, em 1965, era 100% rock ‘n’ roll. Uma mulher! Uma mulher! Outra mulher! Entrevistando os Beatles! Escrevendo sobre shows! E discos!

Tudo é possível, uma voz sussurrou no meu ouvido, uma voz que era a soma das duas Lillians. Você vai precisar de muita coragem, muita paciência e muita teimosia. Mas olhe para nós. Olhe para nós – é tudo verdade, nós somos o que você pode ser.

Li as duas Lillians minha vida toda, enquanto elas foram publicadas. Roxon colaborou com todas as revistas e jornais essenciais da cena rock dos anos 1960 e 1970, e, em 1969, escreveu o primeiro livro definitivo do gênero, a Rock Encyclopaedia. Morreu aos 41 anos, em 1973, de um ataque de asma. Chorei quando li a notícia e descobri que ela, como eu, tinha esse ponto fraco. Pensei – será mais difícil ainda respirar no mundo dos homens? (Era. Ainda é.)

Lillian Ross viveu longa e lindamente, e eu a amei cada vez mais, amei pelo que escrevia, e como escrevia – seus textos, sua vida, o modo como ela se colocava como protagonista na vida e testemunha inteligente nos textos. Quando li a notícia de sua morte, aos 99 anos, não chorei: virei um shot de boa tequila e gritei – salve aquela que partiu! O que é lembrado, vive.

* * * * *

Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do Brasil e Folha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964 (Companhia das Letras, 

 

Ana Maria Bahiana

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