As palavras não têm paz

04/02/2021

Detalhe de uma pedra-sabão

 

Em relação às outras linguagens artísticas, como a pintura, a dança e a música, a escrita de ficção apresenta um revés. Nossa matéria-prima é a mesma utilizada – e abusada – todos os dias, pelos nossos consumidores. Dentre os espectadores de pintura, dança e música, são raras as pessoas que pintam, dançam e compõem ou tocam. Mas dentre os leitores, todos, sem exceção, falam as mesmas palavras que leem. Talvez alguns achem que isso seja uma vantagem, mas não é. Nem para nós e nem para eles.

O fato de produtores e consumidores partilharmos a mesma matéria faz com que ela, a palavra, muitas vezes perca uma de suas características mais importantes: a resistência. Deixamos de encarar a palavra como uma matéria, um material, para pensarmos nela apenas como suporte, com sua carga de significado ou conteúdo. Não lidamos com ela como se ela oferecesse dificuldades, exigisse diferentes formas de penetração e ferramentas, ângulos distintos para cada tipo de uso.

O pintor, por exemplo, dependendo da tinta e da tela que usa, sabe o tempo de secagem, o tipo de pincel e de pincelada que precisa aplicar. O dançarino sabe o peso, a distância, a pegada, a força, o equilíbrio. O músico deve conhecer o ritmo, o timbre, os instrumentos, a altura, a pulsação.

E o escritor?

Seria tão bom se também nós pudéssemos e precisássemos, mais ainda, pesar as palavras, medi-las, avaliar sua carga de força, seu literal cabimento dentro de uma frase. Costumo dizer que a literatura deve recuperar, para as palavras, seu nível de impenetrabilidade perdida.

As palavras podem e realmente oferecem graus variados de resistência, assim como uma pedra oferece para um escultor. A pedra-sabão é mais mole e o mármore é mais duro; por isso, não se pode penetrar a primeira com um machado e nem a segunda com um estilete.

O mesmo se aplica às palavras, também elas materiais mais ou menos resistentes, ou mais ou menos penetráveis. Pense nas palavras “eu te amo”. Elas praticamente são uma única palavra, de tão usadas. Qual seu grau de resistência? Praticamente nenhum. Elas são moles e penetráveis como a água e vivem escancaradas, como quem diz: “penetre-me”. O que faz um escritor diante disso? Ele precisa escolher as ferramentas cuja penetração transforme “eu te amo” em significantes mais duros e resistentes. Ele diz, por exemplo: “passas sem ver teu vigia, catando a poesia que entornas no chão” ou “senhora, eu vos amo tanto/ que até por seu marido/ me dá um certo quebranto” ou “Antonia, você parece uma lagarta listrada”.

O escritor precisa tentar, muitas vezes, esquecer que as palavras têm significados ou, o que é ainda mais difícil, tentar fazer com que coincida o que se diz com a forma como se diz. E isso não vale apenas para a poesia, mas também para a prosa. Diante de três sinônimos, como por exemplo “essencial”, “fundamental” e “relevante”, a escolha não pode ser indiferente. Cada uma dessas palavras diz coisas bem distintas e de formas bem distintas, quando aplicada à literatura. “Essencial” vem de essência, de algo a que tudo se reduz, quando nada mais resta; “fundamental” diz respeito a um fundamento, àquilo sem o que a coisa não para em pé e “relevante”, finalmente, é algo que se destaca em relação a tudo o mais. Não se pode usá-las indiscriminadamente, assim como não se pode usar aquarela em vez de guache.

Palavras, para o escritor, são como coisas e as coisas, como diz Arnaldo Antunes, têm aparência, som, peso, forma, medida, cor, densidade e temperatura. Mas não as deixamos em paz e queremos que elas sejam somente verdades, mentiras, o bem e o mal. Deixe as palavras dizerem o que querem e não o que queremos que elas digam. Só um pouquinho, por favor.

 

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

Noemi Jaffe

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

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