Atrasos

29/01/2020

GettyImages/ Coreograph

 

Atrasos. Nossa conversa de hoje é sobre atrasos.

Pra começar, estou atrasada com esta coluna. Era hora de fazer uma coluna sobre começos e desejar um feliz ano novo para todos, mas não consegui começar o ano pois estou atrasada terminando o ano passado. E o retrasado. Tem tanta coisa pendente que dá a sensação de uma vida com muitos atrasos somados. Ouvia quando era criança que vivíamos num país atrasado. Era o país que estava em atraso, não sentia como sendo uma parte minha em desajuste, parecia que as coisas seguiam no caminho para alinhar os ponteiros. Bastante tempo passou e nosso relógio continua desajustado com o relógio da História.

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A peça Antígona, de Sófocles, tem início com uma conversa entre duas irmãs que perderam os seus irmãos (mortos um pelas mãos do outro). O tio, agora rei, mandou enterrar e velar um deles, mas proibiu com decreto que fizessem os mesmo rituais para o outro, abandonando seu corpo às aves de rapina. Todo o conflito da peça se baseia nisto: Antígona se rebela ao saber que o irmão não será velado. Antígona tem sangue nos olhos, mas ela enxerga muito bem. Tem a tranquilidade daqueles que sabem o que deve ser feito. Ela não se conforma e decide velar o irmão. É preciso elaborar a morte, cumprir os rituais e enterrar os mortos.

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Sem tempo para elaborar as coisas, nessa enxurrada em que estamos, aos poucos vamos varrendo a “poeira” para baixo do tapete e deixando tudo como está. Estamos atrasados? Tudo bem, depois a gente pensa, depois limpa isso aí, mas, quando vemos, estamos soterrados na poeira e não temos mais como manter a cabeça do lado de fora. Era hora de começar uma nova década, fazer o balanço do que passou e seguir adiante, mas acho que não estamos conseguindo lidar com os nossos fantasmas. Em determinado ponto da peça de Sófocles, na versão de Bertold Brecht (tradução de Angelika E. Köhnke e Christine Roehrig), Antígona diz para a irmã:

“O passado abandonado

jamais se torna passado.”

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Contam que na noite da Revolução dos Cravos, em Portugal, havia um código combinado com os oficiais que fariam o levante. Se, por volta da meia-noite, a Rádio Renascença tocasse a música “Grândola, vila morena”, de Zeca Afonso, eles podiam pegar as armas e seguir para o embate. Combinação semelhante tinha sido feita trinta anos antes, na Segunda Guerra, no dia D. A rádio BBC inglesa (que chegava até as praias normandas) tocaria o poema “Canção de outono”, de Paul Verlaine, para avisar aos resistentes franceses que os aliados atravessariam a mancha e que eles podiam obstruir as estradas no norte da França para, assim, impedir a chegada dos alemães.

Esses códigos podiam ser quaisquer outros: toques de campainhas, um gato miando, um bilhete de amor disfarçado. Mas são poemas. São códigos simbólicos. Que atravessam o país pelas ondas de rádio e dispararam mudanças no curso da História.

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Estamos vivendo hoje no Brasil uma série de ataques sistemáticos, reais e simbólicos, à nossa cultura, às nossas instituições, à nossa produção. Tem sido muito difícil conseguir refletir sobre tudo e ter clareza do que fazer. De todo modo, há códigos simbólicos sendo transmitidos. Não sabemos o que eles podem disparar, mas é certo que o passado está aqui agora e temos que olhar para ele de frente. Falta apenas sangue nos olhos.

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Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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