Carta a Jostein Gaarder

28/05/2020

 

A jornalista paulistana Giuliana Bergamo escreveu a carta abaixo ao escritor noruguês Jostein Gaarder, autor de O mundo de Sofia e de tantos outros livros maravilhosos, para contar como a leitura de seu livro a tem ajudado a aproximar os filhos da filosofia nesses tempos tão incomuns.

Giuliana com seus filhos Antônio e Valentina, que segura "O mundo de Sofia".

 

Caro Sr. Gaarder.

 

Como vai?

Espero que bem, em segurança e com saúde.

 

Sou brasileira e comecei a ler seus livros quando tinha catorze anos.

Desde então, converso com o senhor e com suas personagens mentalmente.

Confesso que mais de uma vez tive vontade de escrever para o senhor. É possível que tenha alguns rascunhos nos meus cadernos da adolescência, mas nunca fui adiante.

Acontece que, agora, nesse momento tão absurdo que estamos vivendo, essa "conversa" ganhou um novo significado. Achei, então, que era hora de dar o próximo passo e escrever realmente.

Não tenho muitas informações de como vai a pandemia na Noruega. Pelo site americano que acompanho diariamente, o número de infectados em seu país é de 8.257. Entre eles, 233 mortos.

Cada infecção e cada morte é imensurável. Mas essa desmesura ganha dimensões ainda mais dramáticas aqui no Brasil. Já passamos dos 245,5 mil doentes e hoje o site registra o número exato de 16.370 mortes.

É muita gente!

Por tudo isso, estamos confinados há dois meses.

Mas onde seus livros entram nessa história?

Explico: não tenho mais catorze anos. Tenho 38. E sou mãe de duas crianças: Antônio, de seis, e Valentina, de nove.

Não sei se o senhor convive com crianças ainda, mas consegue imaginar o que é manter dois pequenos seres em confinamento por tanto tempo? Ainda mais ouvindo tantas notícias assustadoras como as que ouvimos diariamente?

Para piorar, a escola foi substituída por tarefas em apostilas e encontros virtuais caóticos.

Não é a educação que me preocupa de verdade. É a integridade emocional deles que me deixa mais angustiada. Lembrei do filme A vida é bela e do recente Jo-jo Rabbit, tentei pensar em uma narrativa particular que poderíamos criar aqui em casa, para cuidar da cabecinha deles, mas não consegui.

Então comecei a matutar um jeito de criar uma escola diferente aqui ou, pelo menos, uma experiência de aprendizado que valesse a pena e fosse razoavelmente prazerosa. Aprender é bom, meus filhos gostam disso, mas estavam ficando estressados e tristes com a nova modalidade de estudo.

Tenho um hábito maluco de me imaginar em condições muito extremas. Fico pensando como seria e como eu me manteria viva no meio de um incêndio, perdida sozinha em um país remoto cuja língua eu não domino, em um aeroporto sem passaporte, esse tipo de coisa. Penso sempre em como as minhas necessidades básicas de ser humano seriam atendidas e como eu sairia da enrascada.

Essas "viagens" têm sido úteis ultimamente. Mas eu nunca tinha pensado em como estudar em uma condição extrema.

Então fiquei quieta e tentei pensar no que é essencial em termos de estudo/aprendizado. E imediatamente lembrei que uma das coisa mais mágicas que a escola fez por mim foram as aulas de filosofia. Eu mal tinha sido alfabetizada...

Foi então que conclui: se tem algo que eu posso ensinar de útil para meus filhos nesse momento, é a filosofia.

Essas memórias logo me levaram a outro marco na minha vida: a descoberta de O mundo de Sofia, o primeiro dos seus livros que li. É um livro grande, bem mais longo do que tudo o que meus filhos já leram ou ouviram. Mas a quarentena não segue parâmetro algum mesmo. Resolvi arriscar.

A leitura ainda está em curso, mas não teve um dia que não vivemos uma experiência absolutamente e imediatamente transformadora  com o livro.

No primeiro dia, tive que interromper a leitura muitas vezes para dar conta dos questionamentos e hipóteses dos dois sobre a existência humana. Foi muito emocionante!

No capítulo sobre Demócrito, é claro que a caixa de Lego acompanhou a história e, acredite, duas crianças tão pequenas agora sabem o que é uma molécula de água, de oxigênio ou de carbono!

Eles também já largaram cartinhas "anônimas" para mim pela casa, divagaram sobre a origem do universo, das estrelas e trocaram impressões sobre seus mitos favoritos.

E, então, conhecemos Aristóletes logo depois de um café da manhã.

Durante a leitura, eles decidiram discutir qual é a forma de Sofia. Como será que ela é? "Você consegue desenhar a Sofia?", perguntou Valentina para o irmão. E ele desenhou.

Assim que fechei o livro, levantei para tomar banho. Quando saí, minutos depois, Valentina, que é muito bagunceira, estava organizando o próprio quarto e Antônio, o álbum de cartas Pokémon.

Em seguida, fizeram faxina na casa espontaneamente, categorizando cada coisa em seu lugar. (É verdade que inundaram a sala, mas eu resolvi dar um desconto.)

Também me disseram que estão convencidos de que a ideia de ordem só existe depois da experiência da ordem e que, no minuto seguinte, se transforma em caos.

Tendo a concordar.

Caro Sr. Gaarder, seu livro, seus personagens e suas histórias são nossos companheiros durante esse tempo absurdo de pandemia. Eles são algumas das nossas únicas fugas, momentos de prazer e sanidade. E eu não sei se o senhor pode imaginar o quão valioso isso é. É muito. É imensurável.

Muito obrigada.

Espero continuar assim bem acompanhada depois que tudo isso passar.

 

Um abraço,

Giuliana Bergamo

São Paulo, 19 de maio de 2020

*** 

Giuliana Bergamo é jornalista e mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. No dia desta publicação, ela e os filhos completaram 75 dias em isolamento social na capital de São Paulo. 

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