Chris Ware x Caetano Galindo - uma conversa sobre a tradução de Rusty Brown (Parte 3: Command + F)

11/05/2022

Em 2021, a Quadrinhos na Cia. lançou Rusty Brown, aguardada graphic novel de Chris Ware. Foi a primeira experiência de Caetano Galindo na tradução de histórias em quadrinhos. Eu, Érico Assis, fui convidado a ser preparador” de Rusty Brown, mas pouco mexi naquela primeira versão da tradução, recém saída das mãos do Galindo, embora vá me gabar pelo resto da vida de que tive algumas palavras nas decisões daquele quebra-cabeça tradutório que é a página 262.

Queria conversar mais sobre a página 262, sobre Ware e a literatura e sobre a primeira experiência na tradução de quadrinhos de um tradutor com farta experiência em outras linguagens. Em uma hora de papo, acabou que conversamos sobre muito mais que Rusty Brown.

A transcrição desta hora começou nas duas colunas anteriores (esta e esta) e segue abaixo e nas próximas duas colunas. Uma hora de papo com o Galindo rende livros.

 

Rusty Brown, página 10.

 

 

Érico Assis:

Como foram suas etapas de tradução?

 

Caetano Galindo:

Como assim?

 

Você faz uma etapa de tradução do livro inteiro e depois revisa? Você vai traduzindo e revisando ao mesmo tempo…?

Foi exatamente igual a como eu faço com prosa. Peguei da primeira página – ou no caso, da capa – fiz a capa toda, fiz os aparatos, quarta capa e tudo mais… (Porque eu acho broxante quando você termina a última página, tem aquela sensação de conclusão e, não, tem que traduzir os blurbs, tem que traduzir o índice. Acho que isso dá uma tristeza. Então fiz toda essa parte prévia antes, tipo cortar a unha da mão direita antes da esquerda.)

O trabalho foi meio picado porque eu estava com a rotina complicada na universidade. Mas fiz de uma vez e depois fiz uma revisão, uma revisão corrida. Em geral eu faço essa revisão corrida meio que sem olhar o original, só pelo texto mesmo. Mas aqui eu acabei voltando muito porque tinha muita dúvida, tinha muita coisa que eu ainda queria matar.

 

Acho que já vi você comentar em entrevistas que sua primeira tradução costuma ser bem atenta, que não você não deixa muito para resolver depois.

Fica muito limpinha. Eu deixo muito limpo. Eu não deixo buraco, eu não deixo coisa pra resolver depois. Não deixo pensar nisso no futuro”.

Nada contra. Sei que tem um monte de gente que funciona assim.

 

Eu!

Pois é. Eu faço a primeira e deixo a primeira limpa. Por exemplo: não conte isso pros nosso leitores, mas no livro do [Abdulrazak] Gurnah, esse livro do cara que ganhou o Nobel e que eu acabei de entregar pra Companhia [Sobrevidas], eles pediram pra entregar a primeira metade antes, pra adiantar a preparação. É uma coisa que ninguém gosta de fazer, mas eles queriam fazer.

Eu entreguei a primeira metade sem nenhuma leitura. Entreguei digitada. Do jeito que foi digitado, foi enviado. Porque já estava legível. Tem errinhos de digitação, tem uma bobagem e outra, mas em geral, quando eu termino, está quase pronto.

Depois que eu terminei tudo, eu dei uma relida e fiz os command+f necessários. Aí avisei a Ciça Caropreso, preparadora, que ela podia bater os dois documentos.

Mas eu não faço isso. Não é recomendável. É só pra ilustrar o quanto a minha primeira versão já sai limpinha. Se for necessário, eu posso mandar pra preparação a partir daí.

 

Eu costumo fazer uma primeira versão bem rápida da tradução e deixo problemas pra resolver depois. Se tem assonâncias, se tem repetições, eu cuido depois também.

Como você faz com uma frase que se repete, que você não lembra como traduziu há dez dias?

O problema é que eu lembro. [risos]

O problema é que eu lembro. Eu acabei de ter uma conversa com meu irmão [o tradutor Rogério Galindo] sobre isso. A gente estava falando de palavras que a gente queria usar em tradução. Eu falei que tinha acabado de usar bafafá” e chiliquenta”. Uma felicidade, nunca tinha usado essas palavras em tradução.

Ele disse: Ah, eu usei tal e tal”. Não”, eu disse: Essa eu usei nesse livro, essa eu usei naquele livro, essa naquele outro”. Ele falou: Como você sabe?” Eu: Não sei.”

E é engraçado. Se o cara me pergunta como você traduziu x em tal livro?”, frequentemente eu não lembro. Mas certas coisas que me são importantes, as coisas em que eu prestei atenção, eu me lembro razoavelmente bem.

 

Mas acontece de você não lembrar, né?

Se acontece, eu não sei. Pois eu não lembro, né? Porque daí eu não percebi. É aquele problema básico da noção de ignorância: eu não vi o problema.

Mas essa coisa de eu estar lendo um treco, de eu ter traduzido o primeiro pedaço dois meses atrás... porque acontece, né, talvez não tanto contigo, mas acontece comigo por causa da rotina de trabalho de eu parar um livro por tempos. Então, se eu traduzi um trecho há dois meses e hoje pego outra frase, uma frase que eu vejo e digo putz, essa frase já apareceu”… Disso eu lembro.

E não necessariamente eu lembro como eu traduzi. Mas deus inventou o command+f e, tipo… eu não sei como os caras trabalhavam antes disso. Pra mim ia ser uma perda de tempo infernal, porque eu ia lembrar que já apareceu e eu ia ficar procurando duas horas pra tentar encontrar. Hoje é localizável. Em geral, é rapidamente localizável porque eu tenho… eu consigo reconstruir as minhas possibilidades. Eu devo ter traduzido assim ou assado”. Aí eu procuro.

 

Ou procura no original e encontra a posição no texto.

É, mas aí dá mais trabalho e dá preguiça.

Mas isso da memória, isso já aconteceu, isso já apareceu uma vez, ou duas vezes, ou três vezes”, isso eu normalmente tenho. Isso normalmente é tranquilinho.

E aí o que acontece é que eu quebro a linearidade. Tipo, se na segunda ocorrência de uma frase eu percebo que uma tradução pode ser mais relevante que a tradução que usei na primeira, e que não vai servir pros dois casos, aí eu quebro a linearidade: volto e arrumo de uma vez na primeira ocorrência. Mas eu arrumo na hora, não deixo pra ver depois.

 

E a sua regra é sempre conferir a tradução depois de passar pelas etapas preparação e de revisão [por outras pessoas], certo?

Sempre. Revisão, nem sempre. Quase nunca, na verdade. Revisões, acho que só vi do Ulysses e de um e outro Joyce. Mas preparação, sim. Preparação eu vejo todas depois.

Aí tem outra coisa. No caso do Rusty Brown, a preparação foi melhor que a tradução. Como é o caso de quase tudo que eu faço na Companhia e mesmo fora da Companhia. Porque a coisa foi ficando tão afinada que eu tendo a praticar o bullying de chamar as mesmas preparadoras que fazem comigo na Companhia. Eu trabalho praticamente só com três preparadoras, elas são melhores do que eu e elas são tão confiáveis que eu não tenho mais que esquadrinhar as preparações em busca de possíveis problemas.

Hoje em dia eu dou uma leitura por cima e percebo rapidamente que as pessoas já estão melhorando meu texto. E eu deixo que elas melhorem. Tem essa grande vantagem. Depois de algum tempo de carreira, meio que montei um timinho. Caetanos Angels. Elas são muito melhores do que eu.

 

Eu não costumo receber minhas traduções depois da preparação. Geralmente eu traduzo e faço duas revisões. Essa coisa das frases que se repetem, por exemplo, é uma das típicas coisas que eu cuido na minha primeira revisão. E a segunda revisão é que eu faço sem o livro original por perto.

Eu acho que a maioria das pessoas de juízo faz que nem você. Sei que o Paulo Britto faz como você e que a Denise Bottmann faz como você.

 

Sim, inclusive está no livro do Britto. Só descobri que ele fazia assim quando li, e eu já usava um método parecido. Fiquei contente.

 

Rusty Brown, página 185.

 

 

Vamos falar de uma vez de Lint” [a terceira história de Rusty Brown, que acompanha a vida do personagem Jordan B. Lint do nascimento à morte mais ou menos à métrica de um acontecimento desta vida por página]. Você não conhecia essa história antes de traduzir, né?

Não, e é bizarro, porque eu tinha o livro da Zadie Smith. Como é que chama…?

 

The Book of Other People.

 

Eu tenho o livro. Eu li umas duas histórias, abandonei não lembro bem por quê, e nem percebi que tinha uma coisa de quadrinhos no meio. E quando eu vi que [Lint”] tinha saído lá, fui olhar na estante e descobri que não tinha visto. Então, não, não tinha lido.

 

No livro da Zadie Smith foi só um trecho. O Ware já tinha publicado Lint” completa na revista dele, a Acme Novelty Library. Já tinha uma certa fama. Virou ópera e tal.

Ah, é?

 

Sim, virou. Depois te vejo um link.

Mas, enfim, você levou algum susto, teve alguma dificuldade ou foi o simples não, vamos lá!”?

Não. Foi um inferno. E foi um inferno porque essa coisa do traduzir enquanto lê, de ir traduzindo no ritmo da leitura…

 

Descobrindo o livro…

… pra mim é acima de tudo uma questão de me manter interessado. Eu me desinteresso fácil pelas coisas. E essa coisa de fazer a tradução desse jeito me mantém meio que trabalhando a quente”, no sentido mais bocó do termo: eu quero saber onde que aquilo vai dar. Eu quero saber o que vai acontecer na história, eu quero saber… E isso faz, pelo menos pra mim, isso faz com que eu trabalhe meio… A palavra é brega, mas que eu trabalhei meio intensamente.

Tipo, em momentos tensos, pesados do livro, eu fico assim [ele arregala os olhos e franze os lábios]. Uuuh, a pessoa está morrendo”. Fico muito tenso traduzindo, muito ligado. Isso que se prolonga pro espectador do filme ou pro leitor do quadrinho por uns cinco minutos, pra nós, tradutores, leva meia hora. A gente prolonga essa sensação durante meia hora ou quarenta minutos. Igual a traduzir Graça infinita e ter que viver dentro da cabeça daqueles malucos, daqueles depressivos, durante aquele monte de tempo. É pesado.

E quando você vai chegando nesse final [de Lint”], você fica nesse… aquilo vai ficando pesado, vai ficando triste, vai ficando doloroso, tocante, né? E daí você vira e se depara com isso, você percebe que você vai ter que manter essa intensidade, inclusive pra que o texto funcione. E ao mesmo tempo ligar todas as chavinhas dos joguinhos intelectuais e formais e de rima e de etcetera, porque você está traduzindo uma coisa que é, funcionalmente, um poema. Você está traduzindo uma coisa que tem uma imbricação de forma e de conteúdo que está além do que a maioria dos poemas consegue ter, porque a coisa visual tá aqui o tempo todo.

 

A conversa continua na próxima coluna.

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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