Coincidência é luz

04/10/2016

Por João Anzanello Carrascoza

 

Já se disse que a vida é sonho ou que vivemos num estado de semi-vigília. Somos seres escuros, sim, de matéria opaca; mas por vezes um fio de luz nos atravessa a consciência: percebemos, não sem espanto, que não estamos sós, fazemos parte de uma rede de dores, sobre a qual numa corda, suspensa às alturas, nossa alegria se equilibra.

Essa luz que, de súbito, se acende — e logo se apaga — pode surgir de várias maneiras. O resultado da fricção entre uma cena impossível e o seu real acontecimento contra todas as probabilidades matemáticas é uma delas: “coincidência” é o nome que lhe damos.

Muitas são as coincidências de superfície, comuns no dia a dia, como os encontros imprevistos, mas há também coincidências subterrâneas, poderosas, capazes de sacudir nossa desatenção, como se estivéssemos na vida às avessas, na condição de forro, quando na verdade somos o lado externo da roupa.

Foram essas luzes, surpreendentes, que me levaram a escrever o Diário das coincidências. Agora que a obra nasceu, senti o desejo de partilhar neste espaço um pouco do mistério que me perpassou ao longo de suas páginas. No livro, eu agrupo relatos de coincidências subterrâneas que se deram comigo, e, quando estava por terminá-lo, o editor Marcelo Ferroni sugeriu que o expandíssemos, buscando a contribuição do público.

Fizemos então um site, convidamos as pessoas a enviarem suas histórias de coincidências e nos comprometemos a selecionar e reescrever as mais expressivas, fazendo sua transfusão para o corpo e o espírito da obra.

Escolhemos seis histórias das dezenas que nos foram enviadas — e quando pensei que integrá-las ao “diário” seria como mover malabares, luzes inesperadas me guiaram à escrita. Um exemplo: sempre sonhei em escrever um texto inspirado na pergunta do poeta Coleridge, evocada por Borges no Livro dos sonhos: “Se um homem atravessasse o Paraíso em um sonho e lhe dessem uma flor como prova de que havia estado ali, e se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão?” Pois a história enviada por Amanda Alves de Souza me deu essa flor, para coincidir com meu sonho. Claro, tenho de evitar spoilers. Quem ler o livro, melhor entenderá.

O mesmo se deu com as demais histórias — além de narrar coincidências subterrâneas, traziam em seu bojo, invisíveis, germes de outras que inexplicavelmente só brotaram quando comecei a recontá-las.

No momento em que me pus a escrever este texto, mais uma coincidência ocorreu, esta de natureza literária, e de superfície, mas a ponto de me dar as palavras exatas para atingir o limite destes quatro mil caracteres: caiu-me na mão, sem querer (sem querer?), o conto Uns braços, de Machado de Assis. Nele, Inácio, um rapaz, “descobre” os lindos braços de dona Severina, esposa de seu patrão, e por ela se apaixona. A mulher, aos poucos e às furtivas, também se interessa pelo jovem. Um dia, adormecido na rede, Inácio sonha que dona Severina vem até ele e o beija. No conto, de fato, ela assim o fez. Pela vida afora, Inácio iria dizer a si mesmo que, apesar de parecer tão real, aquele episódio não passara de um sonho… Jamais desconfiou que estava enganado.

A realidade me envolveu em muitas histórias como esta de Machado de Assis. Não sei se, narrando-as no Diário das coincidências, fui mais fundo no estado de semi-sonolência em que vivemos ou se acordei. Quem sabe você, leitor, com a sua luz, possa me dizer.

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DIÁRIO DAS COINCIDÊNCIAS
Sinopse: Todo mundo tem uma coincidência para contar. Seja uma pequena troca de olhares entre desconhecidos que se reconhecem de passagem ou um nome que teima em aparecer no seu caminho. Este livro é permeado por esses tipos de coincidências. As histórias, vividas por um personagem que, por vezes, confunde-se com o próprio autor, vão sendo contadas em meio a pequenos momentos carregados de significado. Com delicadeza e maestria, Diário das coincidências tece uma trama de pequenas histórias, em que o leitor, ao puxar um fio, vai descobrindo conexões e desvendando a beleza do dia a dia. Este breve diário expõe a leveza do destino e concede uma chave de leitura para o inexplicável cotidiano.

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João Anzanello Carrascoza nasceu no interior de São Paulo, na cidade de Cravinhos, em 1962. Mudou-se para a capital, onde estudou publicidade e propaganda, e começou a publicar seus primeiros escritos em jornais e revistas. Lançou em 2016 o livro Diário das coincidências pela Alfaguara.

 

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