Com O sol na cabeça, Geovani Martins se revela uma das vozes mais promissoras da literatura brasileira contemporânea

11/04/2018

Por Evanilton Gonçalves

O sol na cabeça apresenta treze contos que orbitam, com coerência, em torno do sol, seja pela presença do calor insuportável que conduz e parece influenciar as ações dos divertidos personagens, seja pela luz intensa que nos desnuda episódios perturbadores.

FOTO: Unsplash

Distante das torres de marfim, o autor desfaz mitos e enriquece a cena literária com a força de sua bem-vinda literatura, cuja inovação reside num realismo onírico, paradoxo que convoca o leitor, nestes tempos autoritários, a ouvir e passar a ver as histórias absurdas cujo motor de projeção é, por um lado, a oralidade singular, recheada de gírias, violência e tensão, e, por outro, a metamorfose da linguagem sem malícia, sutil e leve.

Em “Rolézim”, que abre o livro, acompanhamos a ida do personagem-narrador com os amigos Vitim, Poca Telha, Tico e Teco desde a favela até a praia na Zona Sul. O conto, pelas mágicas coincidências da vida, parece ter sido musicado por Chico Buarque em “As caravanas”. Nessa história, temos um bom exemplo da sensação produzida pela temperatura elevada na cidade do Rio de Janeiro, pois um simples passeio de cinco jovens provoca paranoias sociais indisfarçáveis e o clima esquenta em outros sentidos. Começa assim: “Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo. Não dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco. Só ficou as mancha: a santa, a pistola e o dinossauro. Já tava dado que o dia ia ser daqueles que tu anda na rua e vê o céu todo embaçado, tudo se mexendo que nem alucinação”. No final dessa grande aventura, os garotos têm de lidar com a perseguição da autoridade policial, a qual se manifesta como um filtro controlador do espaço que, apesar de público, não aceita tranquilamente a todos.

Embora a voz narrativa se estabeleça a partir das margens da sociedade fluminense, a ficção de Geovani se mostra atenta aos diferentes pontos de vista e encarna os personagens mais diversos, resultando em histórias insólitas como “Espiral”, cujo narrador constata: “[…] o abismo que marca a fronteira entre o morro e o asfalto na Zona Sul é muito mais profundo”. Nesse conto, inicia-se um jogo sádico entre personagens de realidades bastante distintas. Eis a origem: “Tudo começou do jeito que eu mais detestava: quando eu, de tão distraído, me assustava com o susto da pessoa e, quando via, era eu o motivo, a ameaça”. Além de tipificar a fragilidade das relações humanas em meio aos contrastes sociais, com ironia o personagem-narrador demonstra que os muros metafóricos ou concretos não conseguem evitar os choques da realidade. Essa é uma das narrativas mais perturbadoras do livro.

A potência narrativa de Geovani está na habilidade com que o autor conduz as tramas, dosando o suspense e a ação, o que gera avidez no leitor pelo desenrolar das histórias. Essa é uma característica que aparece em todos os contos do livro. Em “Roleta-russa”, por exemplo, do qual o título do livro é pinçado, o personagem Paulo lida com as angústias da adolescência enquanto tenta se encaixar melhor no mundo. À medida que a narrativa avança, a sensação de um desfecho trágico parece inevitável. Já em “O caso da borboleta”, um dos mais singelos do livro, o narrador dá vida a Breno, uma criança de nove anos que explora as pequenas descobertas de seu mundo. Aí, a fabulação torna mais evidente a poesia que há na prosa do autor: “‘Ninguém nasce borboleta’, pensou Breno. Depois disse baixinho: ‘A borboleta é um presente do tempo’. Lá fora, ela, a borboleta, não pensava nada disso. Ocupava-se em voar pela noite de árvore em árvore”.

“A história do Periquito e do Macaco” mostra, a partir de um olhar de dentro, acontecimentos que se desenrolam após a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (upp) na Rocinha. Nesse sentido, parece que, para inibir a violência na cidade, o Estado causa mais violência nas favelas. Numa prosa cruel e cheia de fúria, o narrador expõe sua peculiar visão sobre os novos conflitos que surgem no cenário. Produzindo contrastes entre um conto e outro, a coletânea segue com “Primeiro dia”, no qual acompanhamos as aventuras juvenis de André, narradas com muito humor, e vemos as traquinagens e os aprendizados próprios do clima escolar, dentro e fora da sala de aula. Com a mudança de escola, André, que acumula histórias lendárias, tem de criar estratégias e exibir sagacidade para lidar com os desafios impostos aos neófitos. Entre as brincadeiras, existe a iminência da vida adulta; assim aponta uma das passagens: André “arrumava uma brecha no pensamento pra sonhar com o futuro próximo”. Nesse texto, o tom adolescente parece camuflar algo aterrador: certos aprendizados podem encerrar a nossa vida ou ampliá-la para outra dimensão.

FOTO: Unsplash

“O rabisco” nos apresenta Fernando, um ex-pichador. Ao narrar a história de um jovem que arrisca a vida em aventuras no alto dos prédios em nome de um legado, o autor nos coloca diante da irreversível condição humana: é preciso existir para se sentir vivo. Sentencia numa passagem: “[…] como a grande maioria das pessoas, sentia a necessidade de não passar batido pelo mundo”.

“A viagem” narra a história do casal universitário Rafa e Nanda, que, junto com Gabriel, amigo de infância de Rafa, se reúnem na casa do argentino Juan, em Arraial do Cabo, para um réveillon tranquilo, longe da agonia de Copacabana. Os ares de fim de ano e as drogas lisérgicas compartilhadas afetam diretamente os planos do grupo. Numa narrativa alucinante, composta pelo delírio e pela intensidade, vemos o clima de paquera e de festividade dar lugar, pouco a pouco, ao ciúme, à confusão e a situações inusitadas. “Estação Padre Miguel” apresenta um cenário desolado pelo crack: o personagem-narrador e seus amigos, Rodrigo, Felipe, Alan e Thiago, divagam fumando um baseado sentados na linha do trem e acabam confrontados pela lei do tráfico de drogas. A construção da narrativa revela de forma dura como os nomes e rostos dos usuários de crack se apagam para surgir o rótulo “tudo um único monte de viciado”, enquanto simplesmente a vida segue.

Em “O cego”, segundo texto mais curto do livro, conhecemos a vida de Matias, da infância à velhice. Embora aparentes banalidades constituam alguns contos, como este, em que o personagem cego ganha dinheiro com música dentro dos ônibus, o que temos, na verdade, é um pretexto para a manipulação de clichês e o reconhecimento dos vícios e virtudes do ser humano. Desse modo, o tom “piedoso” dá lugar a uma narrativa que se desenvolve de maneira surpreendente. Uma das passagens diz: “A experiência de repetir dia após dia sua própria história foi se tornando cada vez mais dolorosa, e viver da caridade passou a ser um inferno”. O jogo temporal aí presente é um dos triunfos do autor.

FOTO: Unsplash

“O mistério da vila” conduz o leitor pelas aventuras de Ruan, Thaís e Matheus e suas brincadeiras. As ruas mostram-se mais uma vez como espaço de lazer e descobertas, em meio à criatividade da vida infantil e aos segredos religiosos. Apesar da fluidez dos textos e da aparente facilidade de leitura, Geovani nos apresenta narrativas sofisticadas e complexas. Assim, aquelas que parecem falar de uma coisa, desdobram-se internamente e ganham direções inesperadas. Ainda em “O mistério da vila”, podemos ler: “As crianças avançam com cautela pela vila quase escura. Nem parece a mesma vila de sempre, onde durante o dia jogam búlica, rodam pião, brincam de pique. Quando é noite de macumba, tudo ganha mistério […]”.

“Sextou” é um dos contos mais claustrofóbicos. Nele um jovem relata as experiências nos subempregos e o saldo de um dia estranho, além dos perrengues com a polícia. Apesar do tom melancólico, o personagem-narrador parece nutrir uma esperança singular ao longo dos devaneios. Numa passagem, afirma: “Uma coisa boa desse trabalho é que não preciso falar com ninguém, tenho tempo pra ficar pensando, planejando minhas coisas, imaginando o futuro”. Uma marca comum em muitos personagens de O sol na cabeça é justamente esse olhar para o futuro, na expectativa de dias melhores.

“Travessia”, último conto do livro, traz a história de Beto, um “soldado do morro” que comete um deslize e tem que arcar com as consequências. A narrativa expõe regras de convivência e nos mostra as nuances da crueldade humana. Com uma única frase o autor nos coloca diante da dramaticidade de todo o cenário: “O sol forte espalha o cheiro de tudo, do esgoto, do lixo e da morte”.

A prosa de Geovani, que aborda de várias maneiras a maconha, lembra A vida em espiral, do senegalês Abasse Ndione, e permite a identificação e o estranhamento de um mundo que está ali, em alguma medida, compartilhado por todos mas cerceado por linhas moralistas. Com O sol na cabeça, Geovani Martins se revela uma das vozes mais promissoras da literatura brasileira contemporânea. No livro, estamos diante de um mundo hostil em que a morte segue à espreita e, a qualquer momento, tudo pode mudar. Os contos muito bem produzidos evidenciam um escritor cuidadoso com a arte da palavra, capaz de sustentar muitas vozes. As narrativas possuem desfechos que possibilitam ao leitor continuar imaginando as histórias além do ponto-final. Parece nos lembrar o autor que, para lá da ficção, existe a vida. Uma interrogação é inevitável: quantos grandes escritores do calibre de Geovani não estão invisíveis entre os becos e vielas?

Sobreviventes de uma guerra aos pobres disfarçada de guerra às drogas, os personagens de O sol na cabeça nos mostram a erudição das ruas e o fascínio pela vida, o que, por sua vez, pode incomodar pessoas preconceituosas ou impactar as “pessoas sensíveis” de Sophia de Mello Breyner, cuja também possível apatia não apaga essas histórias, tampouco reduz a habilidade inegável de seu autor. O verso “Estranho a coisa toda não parecer um pesadelo”, de Carlito Azevedo, parece ser o fio condutor de Geovani nesse livro, na mesma medida em que o autor nos oferece o calor de sua narrativa e nos permite lembrar o primeiro verso de “Juízo final”, de Nelson Cavaquinho: “O sol há de brilhar mais uma vez”.

****

Evanilton Gonçalves é escritor. Autor de Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo (Paralelo13S, 2017).

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog