"Comédia", de Dante Alighieri, na Companhia das Letras

25/03/2021

No segundo semestre de 2021 a Companhia das Letras publicará uma nova edição bilíngue do Inferno, de Dante Alighieri. Com tradução de Maurício Santana Dias, Pedro Falleiros Heise e Emanuel França de Brito, o livro está previsto para outubro e será o primeiro volume da Comédia a ser publicado na editora. O título recupera a forma como Dante se refere ao seu poema, sem o adjetivo “divina” que os editores acrescentaram a partir do Renascimento. Os próximos volumes, Purgatório e Paraíso, estão previstos respectivamente para 2023 e 2025, sempre com o trabalho conjunto dos três tradutores. A edição contará ainda com introdução e notas dos tradutores, ensaios críticos de poetas sobre a obra de Dante, como Eugenio Montale, Pier Paolo Pasolini e Dante Milano, além de gravuras de Evandro Carlos Jardim.

Em comemoração ao Dantedì, o Dia de Dante (uma referência à data em que o poeta viajante da Comédia teria saído da “selva escura”), publicamos abaixo a tradução inédita de um trecho do canto XXVI do Inferno, em que o herói Ulisses exalta a importância de se perseguir virtude e ciência, e a reprodução exclusiva de três das gravuras feitas por Jardim para nossa edição.

 

Gravura por Evandro Carlos Jardim

 

Inferno, XXVI, 76-142

Depois que a chama trouxe os dois cativos
ao tempo e ao lugar que quis meu guia,
assim o ouvi falar em tons altivos:                                        78

“Ó vós que estais num fogo só que chia,
se mereci de vós durante a vida,
se mereci de vós a cortesia                                                    81

quando altos versos fiz na terra havida,
não vos movais; mas diga um de vós dois
onde, pra si, a morte foi cumprida”.                                     84

Da chama antiga o chifre maior pôs-
se a ondular e assim foi murmurando,
como a que o vento cansa no ar veloz;                                87

então a ponta aqui e ali vagando,
como se fosse a língua que falasse,
lançou a voz afora e disse: “Quando                                     90

parti de Circe, a qual fez que eu ficasse
mais de um ano lá perto de Gaeta,
antes que assim Eneia a nomeasse,                                       93

nem ternura de filho, nem a reta
adoração ao pai, nem mesmo o amor
por alegrar Penélope dileta                                                   96

puderam superar em mim o ardor
que tive em ser conhecedor do mundo
e dos vícios humanos e o valor;                                            99

mas me meti pelo alto-mar a fundo
só com um lenho e os poucos companheiros
aos quais me atava um vínculo profundo.                             102

Até a Espanha vi os dois costeiros,
mais o Marrocos, e avistei Sardenha
e outras ilhas do mar em nevoeiros.                                      105

Lentos no rastro que o batel desenha,
éramos velhos ao chegar à estreita
foz onde Hércules pôs a sua senha                                        108

pra que o homem além não acometa;
pela direita mão deixei Sevilha,
e Ceuta na outra costa lá se deita.                                         111

‘Ó irmãos’, disse, ‘que por esta trilha
correstes riscos rumo ao ocidente,
pensando nesta tão breve vigília                                           114

dos sentidos que o fado nos consente,
não queirais vos negar a experiência
de o sol seguir ao mundo além sem gente.                           117

Ora considerai vossa ascendência:
não fostes feitos pra viver qual brutos,
mas para perseguir virtude e ciência’.                                  120

Meus companheiros fiz tão resolutos
com esta oração breve, no caminho,
que logo desejaram ver os frutos;                                         123

coa popa pro horizonte matutino,
fizemos com os remos voo insano,
à esquerda conquistando o mar vizinho.                               126

Já as estrelas do outro polo arcano
a noite via, e o nosso ia tão raso
que não surgia fora do oceano.                                             129

Cinco vezes brilhou, cinco em ocaso,
o lume que jazia sob a lua
após termos entrado no alto passo,                                       132

quando surgiu uma montanha nua
e azul pela distância, alta tanto
quanto jamais eu avistara alg?a.                                           135

Na alegria, do riso fez-se o pranto;
da nova terra veio um vendaval
e percutiu do lenho o primo canto.                                       138

Ele o girou três vezes no caudal;
na quarta então a popa se elevou,
como alguém quis, e a proa foi coa nau,                               141

até que sobre nós o mar fechou”.

 

 

Gravura por Evandro Carlos Jardim

 

Sobre os tradutores:

Emanuel França de Brito é professor de Literatura Italiana na Universidade Federal Fluminense. Traduziu o Convívio de Dante Alighieri (Penguin-Companhia, 2019) e a Retórica de Brunetto Latini (Editora 34-UFPR, no prelo). Dedica sua pesquisa acadêmica, principalmente, às letras italianas dos séculos XIII e XIV e à sua tradução ao português brasileiro.

Maurício Santana Dias nasceu em Salvador, em 1968. É livre-docente em Letras Modernas e Estudos da Tradução na USP, tradutor e crítico literário. Foi professor da Uerj entre 1995 e 1998, correspondente em Buenos Aires e jornalista cultural da Folha de S. Paulo entre 1998 e 2003, pesquisador visitante da Georgetown University (Washington, DC) em 2000. Em 2019, recebeu do Ministério da Cultura da Itália o Prêmio Nacional de Tradução. Autor de A Demora: Claudio Magris, Danúbio, Microcosmos (Lumme), já traduziu e organizou mais de 50 títulos, entre eles 40 Novelas de Luigi Pirandello (Companhia das Letras, Prêmio Paulo Rónai da FBN em 2008), Trabalhar cansa (Cosac Naify/7 Letras, 3º lugar no Prêmio Jabuti em 2010), O príncipe (Penguin-Companhia da Letras) e a tetralogia napolitana A amiga genial (Biblioteca Azul), de Elena Ferrante.

Pedro Falleiros Heise é professor de Língua e Literatura Latinas da Universidade Federal de Santa Catarina. Já traduziu uma seleta da Eneida de Virgílio (Clandestina, 2017), além da Vida de Dante escrita por Boccaccio (Penguin-Companhia, no prelo). Em suas pesquisas se dedica às literaturas latinas, italianas e brasileiras e suas intersecções.

 

Gravura por Evandro Carlos Jardim

 

Sobre o ilustrador:

Evandro Carlos Jardim nasceu em 1935 em São Paulo. Em 1953, ingressou na Escola de Belas Artes de São Paulo. Entre 1956 e 1957, estudou gravura em metal com Francesc Domingo Segura. Cursou mestrado e doutorado n ECA-USP. Desenvolveu seu trabalho artístico primordialmente no campo da gravura em metal, da técnica da água-forte, mas também trabalha com desenho e pintura. Na década de 1960 lecionOU no ensino secundário, atuando como professor de desenho. Já na década de 1970, leciona gravura na Escola de Belas Artes de São Paulo, posteriormente na FAAP e na ECA-USP. Recebeu diversos prêmios e realizou várias exposições individuais: no MASP (1973), Pinacoteca do Estado de São Paulo (1983), Instituto Moreira Salles, São Paulo (2005), dentre outros.

 

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