Como a pálpebra sobre o olho antes do sono

14/01/2020

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Que o ano seja:

Como a pálpebra sobre o olho antes do sono. Como uma rua que corta a cidade ao meio. Como uma cicatriz antiga costurando a pele. Como um lençol branco sobre a cama de anos. Como uma nuvem que se avista pela janela do avião. Como um rio se estendendo adiante da proa. Como um navio distante que ocupa a linha do horizonte. Como uma fileira de formigas na direção do formigueiro. Como o piso novo da casa recém construída. Como o papel de presente prestes a embalar um volume. Como um tapete esticado onde vão passar convidados. Como varais suspensos e ainda sem roupas. Como uma barra de chocolate por comer. Como uma campina atapetada de flores. Como um cão basset olhando para a calçada. Como uma lousa varando a sala de aula. Como uma janela de vidro que anuncia lá fora. Como uma caneta usada e sua transparência. Como uma tarde que se insinua como se fora espaço. Como o rabo de um esquilo que o equilibra. Como uma vagem que oculta seus brotos. Como um pescoço de girafa cujo topo mal se vislumbra. Como o bigode de Nietzsche sendo cofiado. Como uma régua que mede uma grande extensão. Como uma tela de linho aguardando pinceladas. Como uma língua de tamanduá na iminência do bote. Como um rolo de papel sobrando numa máquina de escrever antiga. Como uma cã colhida da mesa. Como uma mesa antes da refeição começar. Como tijolos enfileirados saindo do forno. Como uma caçamba ainda não carregada. Como uma lâmina de análises clínicas que acaba de ser polida. Como uma palavra longa sendo pronunciada. Como uma túnica que ainda não foi dobrada. Como a tábua de passar roupas, aberta no quintal da casa. Como o mar que se estira inabarcável. Como a espuma de uma onda que quebra, próxima da areia. Como um osso femural, impávido. Como as noites brancas de Moscou, espichando-se sobre as manhãs. Como a campa de um amigo querido. Como um abraço prolongado e sem motivos. Como um manuscrito enrolado dentro de um armário. Como um cartaz de protesto pregado a um poste. Como um travesseiro recém afofado. Como um diafragma durante uma inspiração profunda. Como a corrida de um jaguar percorrendo a floresta. Como as prateleiras da biblioteca de Babel. Como um mapa sendo dedilhado por uma criança. Como o gelo revestindo um lago no inverno. Como placas tectônicas deslizando durante um terremoto. Como uma rede vazia balançando no vento. Como um dedo apoiado sobre um teclado. Como um piano cujo tampo se abre devagar. Como uma barriga distendida no pré-parto. Como um cordão umbilical ainda não rompido. Como um remo que se mergulha na água. Como uma fotografia dos pais encontrada numa gaveta. Como uma revoada de andorinhas triangulando no céu. Como a estrada, como uma ruga, como uma guitarra. Como uma seta lançada no ar.

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

Noemi Jaffe

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

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