Companhia na Flip: Dia 4

30/07/2017

Foto: Walter Craveiro/Flip

Quando anunciou o início da primeira mesa do quarto dia da Flip no Auditório da Matriz, Joselia Aguiar disse que ela refletiria temas de Lima Barreto, apesar de não ser uma discussão sobre o autor. A desigualdade e os excluídos da sociedade sempre foram importantes na obra de Lima, e foi sobre personagens desconhecidas, mulheres revolucionárias e escravos libertos, que a escritora Ana Miranda e o historiador João José Reis falaram na mesa "Fora de série", mediada por Lilia Moritz Schwarcz.

Autora de livros como Semíramis, Boca do inferno O retrato do reiAna Miranda mistura personagens reais, principalmente da literatura, com sua ficção. Em seu livro mais recente, Chica da Silva é sua protagonista. Sobre ficção e realidade, Ana contou que "tudo o que eu estava fazendo era ficção, e tudo vinha da realidade. Fosse pessoal, da história brasileira, de amigos que me contavam". A sua realidade, segundo a autora, é uma sala cheia de livros, e é por isso que tantos autores e personagens históricos fazem parte da sua ficção. 

João José Reis é referência internacional nos estudos sobre escravidão. Publicou obras como Rebelião escrava no Brasil - que leu durante a mesa -, Domingos Sodré: um sacerdote africano O alufá RufinoLilia destacou que as obras de João José Reis desfizeram a noção de que os escravos no Brasil eram passivos e que a liberdade veio da boa vontade do governo. José Reis contou que procurou fazer em sua pesquisa uma abordagem mais social e cultural, e viu ligações entre as rebeliões das pessoas escravizadas no Brasil com as guerras que aconteciam na África na mesma época. Quando falou sobre seus biografados, Domingos Sodré e o alufá Rufino, lembrou que eles eram pessoas desconhecidas - diferente de Chica de Silva - que vieram ao Brasil como escravos, ou nasceram escravos, e conquistaram sua liberdade. "Eles deixaram pistas cheias de falhas, de buracos, e você tem que preencher com a imaginação e com outras personagens", contou o historiador, dizendo que é necessário preencher muitas brechas das documentações e livros de história com probabilidades e verossimilhanças, e por isso não considera a história uma ciência exata.

João José Reis destacou que, mesmo conquistando a liberdade e a riqueza, essas personagens não frequentavam os grandes salões da sociedade, ainda deixados à margem por serem de origem não aristrocrática. "Há de se fazer reparação mesmo se não tivesse tido escravidão, mas por ter tido desigualdade", concluiu. E ainda fez uma crítica ao ensino, que não aborda questões da cultura e da história africana, tão importantes para a compreensão do Brasil, enquanto dá espaço para a história europeia. "Num concurso de redação, um garoto de 9 anos escreveu que o que ele mais sentia na escola era nada existir sobre a cultura africana", contou. 

Ana Miranda também lembrou de personagens de seus romances que se aproximavam dos livros de João José Reis. "Bárbara do Crato lutava pela liberdade. As virgens do desmundo sonhavam a liberdade. A Chica da Silva conquistou a liberdade", disse  a autora, completando que há algo em sua obra que sempre a leva ao assunto do exílio. No final da mesa, os autores também comentaram a situação política e social atual do Brasil. Para Ana Miranda, "estamos vivendo num pesadelo", e João José Reis complementou dizendo que este pesadelo está muito bem documentado, nada do que está acontecendo é ficção. 

Foto: Walter Craveiro/Flip

Na mesa seguinte, "Kanguei no Maiki - Peguei o microfone", o confinamento foi tema da conversa. O rapper angolano Luaty Beirão e a romancista Maria Valéria Rezende contaram suas experiências com a prisão, o ativismo e a literatura. A mediadora Mariana Figueiras começou a mesa falando da experiência de Luaty. Ele foi preso em Angola por ter participado de um grupo de leitura que usava livros "proibidos", considerados subversivos. Foi condenado, fez uma greve de fome de 36 dias e, da prisão, escreveu o diário Sou eu mais livre, então. "Os livros são os nossos amigos, a escrita é o nosso desabafo", disse Luaty ao comentar sobre as leituras que continuou fazendo enquanto estava detido, lembrando também que, naquele momento, a música que fazia não era o bastante para passar a sua mensagem.

Em seguida, Maria Valéria Rezende afirmou que, por dividir a mesa com o rapper e ter lido seus livros, notou que viveu entrando e saindo de prisões, apesar de nunca ter sido presa. Durante a ditadura, Maria Valéria Rezende realizava constantes visitas aos presos políticos, entre eles Frei Betto, para trazer conforto e também ajudar a levar suas mensagens para fora da prisão. "Eu nunca fui presa. Fui apanhada, e sou capaz de fazer uma cara de boba tão grande que achavam que estava lá de boba mesmo, e me soltavam", contou rindo. Maria Valéria também falou sobre seu trabalho como educadora no sertão pernambuquense após a ditadura, e leu um trecho de Outros cantos, romance baseado nessa experiência e que ganhou o prêmio Casa de las Americas no começo deste ano. Maria Valéria falou também sobre o grupo Mulherio das Letras, que se organizou durante uma Flip e passou a discutir e difundir obras de escritoras brasileiras no Facebook. "A gente não sabia quem era escritora no Brasil porque não aparecia no jornal", revela, dizendo ter se surpreendido com a quantidade de autoras que acabaram se juntando ao grupo: em três meses, mais de cinco mil mulheres se inscreveram. A escritora diz ter notado que as autoras brasileiras são multiartistas, pois escrevem, atuam, cantam, pintam, esculpem etc. a mesa terminou com Luaty cantando um de seus raps. 

Veja também como foi o terceiro dia da Flipinha no Blog da Letrinhas

Até a próxima Flip! 

 

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