Contos clássicos e princesas nada indefesas

01/12/2016

Por Kate Schatz 

Ilustração: Bárbara Malagoli 

Eu amo Chapeuzinho Esfarrapado e outros contos feministas do folclore mundial — mas isso não é surpresa nenhuma.

Sou uma escritora feminista, uma historiadora amadora. Uma apaixonada por literatura, uma mãe ativista. Sempre amei contos de fadas e histórias folclóricas. E me formei em estudos da mulher. É claro que eu amo esse livro!

O que estou querendo dizer é que não ia ser difícil me agradar.

Por isso, decidi fazer um teste de verdade. Anunciei para minha filha de quase sete anos (seis e três quartos — ela gosta de ser precisa) que, agora, tínhamos um livro novo para ler antes de dormir. E, juntas, lemos as histórias do livro, noite após noite. Nós nos aninhamos no beliche de cima onde ela dorme, e seu corpinho quente apertou o meu quando o ogro apareceu, ficou tenso de expectativa quando o príncipe comeu a maçã, relaxou e riu triunfalmente quando Kamala enganou os ladrões. Demos risadinhas do gigante bobo e gargalhamos da égua vestida de noiva. E na grande tradição de crianças ansiosas porém sonolentas do mundo todo, a cada noite ela implorava por só mais uma história. Certa noite eu disse não, está tarde, e apaguei o abajur. Na penumbra do quarto, ela pegou o livro num desafio mudo e continuou a ler à meia-luz. Eu deixei — como não ia deixar?

Com que minha filha sonhava depois de devorar essas histórias? Será que se transformava numa talentosa rainha disfarçada, numa jornada para salvar o marido? Na valente Súmac com seu leque mágico? Numa donzela radiante emergindo de um lago? A cada história, as possibilidades aumentavam.

Chapeuzinho Esfarrapado e outros contos feministas do folclore mundial é um livro clássico, publicado originalmente nos Estados Unidos pela Feminist Press em 1978. Naquele mesmo ano, a moeda de um dólar com o rosto de Susan B. Anthony foi aprovada para circulação, Buffy Sainte-Marie fez uma participação na Vila Sésamo e a primeira marcha Take Back the Night aconteceu em São Francisco. The Black Unicorn, de Audre Lorde, o primeiro livro de poemas de bell hooks e “A Black Feminist Statement”, do Combahee River Collective, foram publicados. Judy Chicago estava terminando a instalação The Dinner Party. Cem mil pessoas marcharam em Washington para exigir uma extensão de prazo para a ratificação da emenda constitucional sobre direitos iguais para as mulheres. Num dia extraordinariamente quente de setembro na Califórnia eu nasci, em meio aos anos finais da segunda onda do feminismo.

Na grande tradição de Joan Didion, eu acredito que todos esses eventos estão completa e absolutamente conectados. Essas são as condições que produziram Chapeuzinho Esfarrapado, e também as condições que me produziram.

Durante a minha infância, li aproximadamente um milhão de livros, mas, por algum motivo, nunca me deparei com essas histórias. Hoje, no entanto, sei que muitos dos meus amigos cresceram com Chapeuzinho Esfarrapado: lembram do livro como “um dos preferidos”, um livro “adorado”. Uma amiga atualmente está lendo sua edição original, em frangalhos, para a filha, torcendo para que não caia aos pedaços antes que elas cheguem ao final.

É por causa desse exemplar já gasto (e dos milhares de outros que vivem em lares do mundo todo) que essas histórias precisavam ser reeditadas . Essa nova edição faz algo velho voltar a ser novo — e é isso, afinal, que os contos de fadas fazem há séculos.

Existem motivos pelos quais certas histórias são contadas e recontadas, geração após geração. Nós voltamos a essas “narrativas-mãe”, revisando-as para que reflitam outros tempos e culturas. Contos de fadas nos fazem absorver mensagens, costumes e lições; exploram experiências humanas cruciais: amor, perda, guerra, a luta para sustentar a família. Eles nos ensinam como tratar um amigo ou um estranho. Como ser mais esperto que aqueles que tentam nos controlar. Contos de fadas são entretenimento e alerta, distração e guia, ilusão e instrução. Sua moral central não deixa de ser relevante — mas as histórias que contamos têm importância.

Em “Kamala e os sete ladrões”, Kamala fica frustrada com o marido preguiçoso, que prefere fofocar a trabalhar. A história nos conta que “por ser uma mulher esperta, Kamala sentou para pensar num plano que lhes permitiria aproveitar ao máximo aquela oportunidade”. Pronto! É isso. Em vez de sentar e esperar ajuda como as princesas passivas que são retratadas com tanta frequência, Kamala age. As mulheres dessas histórias aproveitam ao máximo suas oportunidades — e essa não é a verdade feminina mais ancestral? A importância de aproveitar oportunidades, dar um jeito, fazer o que se pode com aquilo que se tem — quando o que se tem é profundamente limitado. Quando você não tem acesso a dinheiro, educação, propriedade, ao seu próprio sistema reprodutor — e ainda assim consegue fazer alguma coisa consigo mesma e com sua situação.

A maior parte das mulheres dessas histórias sustenta os parentes, seja através da magia, da inteligência, da coragem ou de alguma combinação das três. Quando a Dama do Lago emerge da água, ansiosa por casar com o tímido pastor, ela traz mais do que sua pessoa linda e encantada — traz um rebanho de gado valioso e um conhecimento tão vasto de ervas curativas que consegue influenciar várias gerações de médicos. Protagonistas como Súmac e a jovem chefe de família são a salvação dos parentes, enquanto mulheres como Kamala, Oonagh e a rainha que toca alaúde acabam (olha o spoiler!) salvando o dia e os maridos. Muitas vezes, essas personagens astutas aprendem a tirar vantagem do patriarcado, usando preconceitos machistas que os homens têm sobre elas a seu próprio favor.

Muitas das histórias no livro exploram o amor e o romance tradicionais, com as mulheres no papel de noivas ansiosas — a reviravolta, no entanto, é que elas têm poder de escolha. Em “O cervo encantado”, Lungile é uma jovem cuja primeira perspectiva de casamento é arruinada por acusações de bruxaria. Após descobrir que um lindo cervo é, na verdade, um chefe poderoso, ela ouve do rapaz: “Será amada e coberta de honras se aceitar ser minha esposa”. É a frase seguinte que me pega: “Lungile consentiu, com grande alegria.” Lungile consentiu. Com grande alegria.

Uma pergunta me assombra depois de ler essas histórias: Quem jogou um feitiço nos contos de fadas, roubando essas histórias ousadas e corajosas das bocas das mães e transformando as meninas fortes em torno das quais elas giram em donzelas indefesas? Quem pegou esses mitos empolgantes e acrescentou mil xícaras de açúcar, as lágrimas de uma princesa solitária e o suor de um lenhador? Que feiticeiro perverso removeu a independência, a esperteza, a inteligência, a audácia e o atrevimento? Existem respostas — Hans, aqueles dois irmãos, Walt, cinco mil anos de patriarcado — mas, na verdade, a pergunta mais importante é: Como a gente devolve tudo isso? Como a gente quebra o feitiço?

Com livros assim, claro. E quando os feitiços do machismo são quebrados, as mulheres consentem com grande alegria. Elas escolhem seus noivos, resgatam seus pais, passam sua sabedoria de geração em geração. Trazem prosperidade, acabam com a seca, enganam trolls — ou seja, sempre ganham daqueles que tentam contrariá-las.

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Kate Schatz é escritora, editora, educadora e ativista. É autora de Rad American Women A-Z, livro que reúne perfis de 26 mulheres que mudaram a história dos Estados Unidos. Este texto foi publicado como introdução ao segundo volume da reedição de Chapeuzinho Esfarrapado pela Feminist Press, em 2016. No Brasil, o livro acaba de ser lançado em volume único pela Seguinte.

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