Créditos a quem merece créditos

23/08/2021

Imagem de divulgação de Batman/Fortnite vol. 1

 

Quem é o autor mais vendido no Brasil neste momento? Segundo a lista de Livros Mais Vendidos do jornal O Globo de 14 de agosto de 2021, é um camarada chamado Christos Gage. Ele seria autor do quê? Batman/Fortnite vol. 3, da editora Panini. Gage também aparece na décima posição, pois é o autor de Batman/Fortnite vol. 1.

Batman/Fortnite é uma série de seis revistas em quadrinhos. Não lembram livros, mas entraram na lista de Livros Mais Vendidos porque têm ISBN e são vendidas em livrarias. E porque venderam. Não é a primeira vez que um quadrinho aparece na Lista. Outros devem aparecer, pois a categoria de HQs está num período de alta nas livrarias.

Mas voltamos ao senhor Christos Gage. Chamar o senhor Gage de autor destes dois quadrinhos – e de único autor – é um problema da Lista, pois ignora fundamentalmente a autoria nos quadrinhos e o jeito de fazer quadrinhos. E não é um problema só da Lista, mas um costume disseminado na imprensa, inclusive na especializada.

Gage é roteirista de todos os volumes de Batman/Fortnite. Ser roteirista de um quadrinho como este significa receber um argumento – uma trama que vai de A a B – elaborado por outras pessoas e inventar algo entre A e B. Batman/Fortnite dá crédito de “Conceito/Consultoria” a Daniel Mustard (um dos diretores da Epic Games, produtora do game Fortnite) antes do crédito a Christos Gage. Não bastasse ter que seguir as ideias do senhor Mustard, o senhor Gage está sujeito ao que é ditado pela casa editorial do gibi, representada por duas editoras nos créditos: Katie Kubert e Liz Erickson.

Mas a história/argumento/trama e o roteiro são, no máximo, 50% de Batman/Fortnite. Quadrinhos, você sabe, não são quadrinhos se não tiverem desenhos. Batman/Fortnite vol. 3 dá créditos de “Desenhos” a Reilly Brown. Tem também créditos de “Arte-final” a Nelson Faro DeCastro, de “Cores” a John Kalisz e de “Letras” (originais) a um estúdio, o Andworld Design. Os três senhores e o estúdio leram e provavelmente seguiram o roteiro do senhor Gage, seguindo o conceito do senhor Mustard, e ainda estão sujeitos àquelas duas editoras, as senhoras Kubert e Erickson. No meio dessa sinuca, ainda podem tomar algumas decisões estilísticas, cromáticas e ergonômicas, e tomam.

Quem conta a história de Batman/Fortnite vol. 3? Toda essa gente: Mustard, Gage, Kubert, Erickson, Brown, DeCastro e a AndWorld. Quem são os autores de Batman/Fortnite vol. 3? Os sete nomezinhos.

É evidente que seria um problema encaixar sete nomes – mesmo sete sobrenomes – no crédito de autor em apenas uma entrada da Lista de Mais Vendidos d’O Globo. É mais problemático, porém, atribuir o crédito apenas a Christos Gage, um dos sete nomes da empreitada, e não escrever nem et alii.

(Isso que nem cheguei nos créditos de tradução: Batman/Fortnite vol 3 tem um tradutor, Rodrigo Barros; um “adaptador” do texto, Gustavo Vícola, também editor da versão brasileira; e letras de Júlio César Nogueira. O gibi não existiria no Brasil sem, portanto, dez nomes.)

É claro que aqui estamos falando da típica linha de produção do quadrinho norte-americano de super-herói. A caixinha de créditos de um gibi desses pode virar uma caixona, com bem mais que sete nomes.

É tradicional na imprensa especializada atribuir a autoria de um gibi desse naipe às duplas roteirista e desenhista: Jerry Siegel & Joe Shuster, Stan Lee & Jack Kirby, Marv Wolfman & George Pérez, Brian K. Vaughan & Fiona Staples. Críticos contemporâneos têm defendido o crédito completo: as escolhas de quem faz arte-final, quem faz cores e quem faz letras alteram o produto, então essas pessoas deviam ser identificadas. “Watchmen de Alan Moore, Dave Gibbons e John Higgins” é mais justo com tudo que faz Watchmen ser Watchmen do que o recorrente “Watchmen de Alan Moore”.

Mangás também são produção de equipe, mas é convenção atribuir a autoria a um nome só, ou dois. Katsuhiro Otomo tinha mais de 30 assistentes em Akira, mas lemos “Akira de Katsuhiro Otomo” e se aceita que os outros fiquem invisíveis. Entre os franco-belgas, quando não se têm um Hergé (que tinha uma penca de assistentes) ou Loisel ou Chabouté, também é comum a capa do álbum destacar duplas de roteirista e desenhista: Goscinny & Uderzo, Jodorowsky & Moebius, Canales & Guarnido. É fato que existem desenhistas que se envolvem com cores e letras, realmente merecendo o crédito por todo o aspecto visual da HQ; mas é igualmente comum encontrar na folha de rosto de um álbum francês, em letras pequenas, o crédito de cores e de letras a nomes que quase ninguém repete. Você já ouviu falar de Thierry Mébarki, colorista de mais de dez Asterix?

O lado não-super-herói do quadrinho norte-americano tem assistentes quando se tem orçamento, e geralmente não se tem. Art Spiegelman foi mesmo o único autor de cada linha e letra de Maus. A mesma coisa em álbuns de Craig Thompson, Chris Ware e Emil Ferris. Brasileiros também costumam fazer roteiro, desenho, letras e buscam as caixas na gráfica daquilo que assinam.

No caso dos gibis de Batman, Homem-Aranha ou outras franquias, a figura do editor ou da editora é tão grande que não dá para desconsiderá-los. Não seria errado dar o crédito corporativo: “Homem-Aranha n. 576, da Marvel Comics”. Batman/Fortnite é uma produção DC Comics/Epic Games, possivelmente concebida, revisada, mexida e remexida por mais do que aqueles sete nomes da caixinha de créditos.

Ninguém faz absolutamente nada sozinho. Os livros da autora X têm inúmeras correções de preparadores, revisores e editores. O filme do diretor Y é resultado das decisões – decisões criativas – de uma lista de gente maior que este texto. Sem falar em influências, sem falar em “morte do autor” e Barthes. Quando se diz que coisa A é de autor B, é porque se adotou uma convenção de que aquela pessoa é a “mais responsável” por aquilo existir do que outras que, indubitável e necessariamente, foram responsáveis pela existência da coisa.

Qual é a convenção dos quadrinhos? Com certeza não deveria ser uma menção única a quem faz o roteiro. A experiência do leitor com o quadrinho vem das decisões de argumento/roteiro, desenho, cor e letras. E de tradução, se for o caso. Se não é uma pessoa só que faz tudo isso, lamento, O Globo, mas ou você deixa pros leitores descobrirem quem produziu aquela HQ (o que seria uma opção ruim) ou abra mais espaço para os créditos na sua lista de Mais Vendidos. Porque ela vai ganhar muito mais quadrinho cheios de autores.

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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