Dave Eggers — American Maverick

19/05/2017

Por João Lourenço

Atire a primeira pedra quem nunca se perdeu em meio às centenas de livros amontoados na estante. Eu, diversas vezes. Por isso, acabei encontrando uma forma bem particular de classificar e organizar meus livros. Ao invés de seguir uma ordem cronológica ou alfabética, arrumo os volumes de acordo com a palavra-chave correspondente à característica mais forte do autor. Confuso? Explico: nomes como Jennifer Egan e David Mitchell, por exemplo, estão na seção "Polifonia". Essa acho que é um tanto óbvia. Basta pensar em autores em que a criação de novos sons/linguagens seja fundamental em suas obras.

Alguns nomes são mais complicados. Qual a palavra-chave para alguém que, além de lançar quase um livro por ano, edita uma das revistas de literatura mais cool dos EUA, é dono de uma editora independente e ainda colabora com ONGs e outros projetos sociais que visam educar jovens e adultos por meio da leitura e escrita criativas? Esse cara é Dave Eggers e ele está na seção que intitulei de "American Maverick".

Maverick é aquele que cria suas próprias regras e se reinventa constantemente. Ele é "o último cowboy", o homem que precisa abandonar a sua turma para encontrar um novo caminho.

Dave Eggers é assim. Entrou para o circuito literário mundial na virada do milênio com a publicação do livro de memórias Uma comovente obra de espantoso talento (Rocco, 2003), em que utiliza elementos fictícios para narrar os desafios de cuidar do irmão mais novo após a morte repentina dos pais. O livro virou best-seller e foi finalista do Pulitzer na categoria Não Ficção. De lá para cá, o autor escreveu romances, coletâneas de não ficção e ensaios. O seu nome também está associado a filmes como Onde vivem os monstros. Ao lado do diretor Spike Jonze, ele escreveu o roteiro, baseado no livro homônimo de Maurice Sendak. Esse mesmo livro inspirou um dos romances do autor: Os monstros, de 2009. 

Agora, Dave Eggers está de volta. Não à literatura, mas ao cinema, com a adaptação do livro O Círculo. Neste romance que se tornou um de seus maiores sucessos, Eggers analisa e nos alerta para um futuro que está cada vez mais próximo; um futuro em que todos são observados e forçados a compartilhar os mais íntimos pensamentos nas redes sociais. A narrativa acompanha Mae Holland (interpretada no filme pela atriz Emma Watson), uma jovem ambiciosa que é contratada para trabalhar em uma influente empresa de internet: O Círculo — uma espécie de mistura de Google, Facebook, Instagram e Twitter. Além disso, a multinacional tem uma plataforma que reúne todos os dados pessoais dos usuários. Ao entrar para o Círculo, Mae conhece um mundo glamoroso, cercado de festas e pessoas importantes. Assim, à medida que a presença e importância de Mae na empresa aumentam, a sua vida pessoal começa a desaparecer em um labirinto sem fim.

Em O Círculo, Eggers mistura um tom satírico com o melhor do suspense para chamar a nossa atenção para as questões pertinentes do nosso tempo: democracia, livre arbítrio e a luta entre público/privado.

Dave Eggers conversou com o Blog da Companhia.

* * *

Há alguns anos, o autor Howard Jacobson me disse que não entendia por que adultos leem Cinquenta tons de cinza ou Harry Potter ao invés de nomes como Henry James. Jacobson disse que atualmente os adultos tendem a evitar a “boa literatura”. Já Roberto Bolaño disse que nasceu e foi criado em uma família preguiçosa e ignorante, e ele não teve ninguém para guiá-lo para a tal “boa literatura” que Jacobson defende. O que você acha? Podemos chegar sozinhos ao hábito de ler bons livros ou isso deve ser enraizado na infância? Como foi o seu processo em se tornar um “bom leitor”?

Aos 14 anos, li Duna, romance de Frank Herbert. Acho que esse foi o primeiro livro real que li por conta própria. Antes disso, lia apenas o que era recomendado pela escola. Acredito que, para se tornar um bom leitor, você precisa se permitir ler um pouco de tudo, sem qualquer noção pré-concebida sobre o que é bom ou ruim. Na nossa organização, 826 Valencia, tentamos transformar as crianças em grandes leitores. Porém, para isso, permitimos que elas escolham o livro que gostariam de ler. Eventualmente, o leitor voraz vai chegar em nomes como Henry James ou até mesmo Bolaño, mas a primeira tarefa é oferecer espaço e, lógico, livros — tudo, claro, sem julgamento.

Quando você começa um novo projeto, segue alguma regra? O que aparece primeiro: linguagem, enredo, tempo, espaço?

Às vezes, tenho um livro esboçado em minha mente antes de começar. Em outras, tomo notas sobre um personagem por anos até que chega aquele momento em que o enredo aparece. É raro, mas também há momentos em que sei quem é o protagonista e conheço o enredo, mas o cenário ainda é um mistério. Em algum momento, tudo se conecta e, finalmente, começo a trabalhar.

Em alguns momentos, O Círculo se lê como uma grande sátira do nosso mundo hiperconectado. No entanto, algumas situações que você trouxe à superfície não estão muito distantes da nossa realidade. Hoje, vejo mais e mais pessoas preocupadas com a falta de privacidade que a internet e as redes sociais nos impõem. Percebo uma tendência entre as pessoas da minha geração em abandonar as redes sociais. Alguns amigos vão além e apenas trocam mensagens eletrônicas em plataformas “seguras”. Agora, sob a administração Trump, receio que este nível de paranoia vai se tornar fundamentado. Em termos de privacidade no mundo digital, quais questões te incomodavam antes de você escrever O Círculo?

Concordo que o livro é satírico até certo ponto. Queria chamar a atenção dos meus leitores para uma nova consciência sobre o quão perturbador o mundo digital pode se tornar. É um completo mistério, além de triste e trágico, como muitas maravilhas que a internet proporciona são também acompanhadas por tanta vigilância e subterfúgio. A internet se tornou um lugar de suspeita e desconfiança e isso é uma vergonha. Mas, de certa forma, isso é um resultado natural, afinal, o modelo de receita da internet depende do rastreamento sem consentimento. Em um mundo ideal, poderíamos refazer a internet sem a constante presença de vigilância. 

No ano passado, um número elevado de pessoas foi atropelado enquanto prestava atenção em seus smartphones. Em certo ponto, todos nós estamos distraídos pelo nível de informação que consumimos todos os dias. Quando se trata de novas tecnologias, algo em particular te preocupa? 

Utilizo a internet todos os dias e escrevo em um MacBook. Sou usuário de todas essas novas tecnologias. O que me preocupa é a liberdade que muitas empresas e governos têm em utilizar essas ferramentas digitais para invadir a nossa privacidade. Estou muito menos preocupado com as redes sociais e mais preocupado com o poder que o governo e as empresas exercem sobre nossas vidas por meio das ferramentas digitais.

Você é um escritor prolífico. Foram quatro livros lançados apenas nos últimos cinco anos. Além disso, você é roteirista e está por trás da McSweeney's, que, além de ser editora independente, publica uma revista homônima trimestral. Como você consegue circular entre essas plataformas e ainda publicar quase um livro por ano?

Quando estou em cima de um romance, escrevo oito horas por dia. Não faço mais nada. Então, às vezes tenho que sair para o mundo e colaborar com outros projetos, como a 826 Valencia ou a Voice of Witness (organizações sem fins lucrativos que apoiam jovens e adultos a superar crises por meio do poder transformativo da escrita e literatura). Porém, essas organizações são dirigidas por pessoas altamente qualificadas e muitas vezes não precisam da minha ajuda. Assim, tenho certa liberdade para simplesmente ficar na minha garagem e escrever. Após anos de trabalho, tenho uma noção mais clara de como escrever um livro — pelo menos tenho mais confiança, sabe, é como se agora conhecesse qual caminho percorrer pelo bosque.

A sua editora é conhecida por lançar livros “bonitos”, únicos, que fogem do padrão do mercado atual. Geralmente, os livros da McSweeney's são aqueles que não costumo emprestar — o que me levou a comprar várias cópias de Fine, Fine, Fine, Fine, Fine, da Diane Williams. Para aqueles que não estão familiarizados com o seu trabalho na McSweeney's, você pode explicar o lema da empresa e a importância em insistir em uma editora independente na era da autopublicação?

A McSweeney's sempre tentou defender escritores que de outra forma não poderiam encontrar uma audiência. Pense em autores que são desvalorizados ou obscuros demais para se encaixar no catálogo de outras editoras. O livro da Diane Williams é um ótimo exemplo, pois definitivamente satisfazia todos esses critérios. Todos nós amamos o trabalho dela há anos e, quando a oportunidade surgiu, nós ficamos em cima até conseguir publicar o maravilhoso Fine, Fine, Fine, Fine, Fine.

O lado editor de ficção e de revista independente colabora com o lado escritor?

Absolutamente. Ser um bom editor ajuda você a se tornar um escritor melhor. Digo isso para os meus alunos o tempo todo. O que acontece é que o trabalho como editor te mantém humilde e ajuda a lembrar que você faz parte de uma cultura baseada em respeito e apoio mútuo.

Em O Círculo, os personagens são incentivados a compartilhar pensamentos e interagir entre si o máximo possível. Assim, as pessoas são seguidas por drones e observadas o tempo todo. Na vida real, costumo ouvir o argumento de que maior vigilância ajuda na formação de seres humanos melhores. Porém, de certa forma, já estamos sendo observados o tempo todo e, no entanto, continuamos a presenciar coisas horríveis — pense no caso do Eric Garner, em Nova York, morto asfixiado em 2014 por um policial. Isso pode soar um pouco pessimista, mas às vezes sinto que o aumento da vigilância só vai mostrar quem já somos. Qual sua opinião? 

Esse é um excelente ponto, algo em que penso bastante. Ainda há muita violência, mesmo quando supomos que as câmeras estão acompanhando tudo o que acontece — especialmente nas regiões centrais, onde o policiamento tende a ser maior. O que me intriga é como essa vigilância constante interfere em nosso código moral. Pense nas crianças dessa geração, que crescem sabendo que estão sendo vigiadas o tempo todo. O livre arbítrio é limitado, logo, fica mais difícil desenvolver qualquer senso de escolha moral. No futuro, as pessoas não vão fazer a coisa certa porque aquilo é o que deve ser feito. Vamos fazer o certo porque sabemos que estamos sendo vigiados.

Logo após a vitória de Trump, a escritora Toni Morrison escreveu um ensaio que dizia que estamos vivendo tempos sombrios. Ela também afirma que agora, mais do que nunca, os artistas não devem ficar calados. Durante a corrida presidencial, você fez várias críticas ao possível governo de Trump. Agora, como você se sente?

A luta continua. Temos muito com que nos preocupar. Ainda temos pelo menos dois anos de batalha contra esse lunático. Até agora, ele não conquistou nada — mas temos que ficar vigilantes.

* * * * *

João Lourenço é editor at large da revista semestral *ffwMAG* e escreve sobre cinema, literatura, música e comportamento para publicações como Harper’s BazaarABD Conceitual. Atualmente, ele planeja lançar uma revista literária independente nos EUA e está terminando de escrever uma coletânea de contos.

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