De onde vêm os Evangelhos

Por Frederico Lourenço
Embora uma primeira leitura dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos como Sinóticos, possa dar a impressão de que estamos diante de mais do mesmo, há um fenômeno que todos os que se aprofundaram nestes textos conhecem bem: quanto mais os lemos, mais diferentes se tornam. E o que chama a nossa atenção não são as semelhanças, mas justamente as diferenças.
Lidos em grego, os três textos conseguem manter uma identidade literária própria, apesar do muito material que partilham. Quase todo o Evangelho de Marcos está contido no Evangelho de Mateus, e mais da metade de Marcos está presente em Lucas. Porém, uma das razões pelas quais os evangelhos sinóticos mantêm uma identidade literária própria, apesar de tanto conteúdo partilhado, é que as frases de Marcos aparecem muitas vezes sutilmente reescritas nos outros dois textos. Mateus e Lucas cultivam um estilo mais apurado do que Marcos. Em Lucas até encontramos o uso correto de um modo do verbo grego (o optativo) que está ausente dos outros evangelhos.
Além de se terem baseado em Marcos, Mateus e Lucas recorreram também a uma fonte adicional, que se convencionou chamar de “Q” (a partir da palavra alemã para fonte: “Quelle”). Essa fonte poderá ter consistido numa coletânea de dizeres atribuídos a Jesus: uma compilação de “lógia” (isto é, “dizeres” em grego), semelhante, talvez, ao Evangelho apócrifo de Tomé, que não narra a vida de Jesus, mas que preserva mais de cem dizeres a ele atribuídos e que, em muitos casos, estão também presentes em Mateus e Lucas. É devido a essa intersecção que, embora o Evangelho de Tomé nos tenha chegado na sua versão mais completa apenas em língua copta, é possível restituir em muitos casos o texto original grego de Tomé.
Mateus e Lucas também se basearam em fontes que não deixaram rastro noutros evangelhos conhecidos até hoje. É só em Lucas que encontramos as parábolas do Filho Pródigo e do Bom Pastor, por exemplo. E só em Mateus que encontramos certas imagens que se tornaram proverbiais, como as pérolas jogadas aos porcos. Só em Mateus, Jesus diz que não é sete vezes que devemos perdoar, mas setenta vezes sete; é só em Mateus que Pedro caminha sobre a água, ou Judas se enforca, ou Pilatos lava as mãos.
Também as quantias de dinheiro referidas por Mateus configuram somas astronômicas, milhões de reais em moeda atual (ver a nota a Mateus 18:24 na minha tradução). Terá sido por isso que afigurou plausível, durante tantos séculos, a identidade do autor anônimo deste evangelho como cobrador de impostos? Quem sabe.
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Frederico Lourenço é escritor, tradutor e professor de grego antigo. Formou-se em línguas e literaturas clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu seu doutorado. Desde 2009 leciona na Universidade de Coimbra. Traduziu do grego a Odisseia, Ilíada e as tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon. Sua tradução da Odisseia recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Pela publicação do Volume I da Bíblia recebeu em 2016 o prêmio Pessoa
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