Diários do isolamento #13: Alejandro Chacoff

04/04/2020

 

Diários do isolamento

Dia 13

Alejandro Chacoff

 

“É mais ou menos como uma guerra.” A frase é de J, não minha, e se a reproduzo aqui é porque ainda não sei se concordo com ela. O silêncio lá fora é certamente ermo, deslocado; não confio nele. Passei muito tempo desejando um silêncio desse quilate para escrever. E agora que finalmente o tenho, quão farsesco ele me parece! No pátio do prédio vizinho, duas crianças correm, estão brincando, mas há algo performático nos gritinhos delas, nos pisões fortes que elas dão no chão. De vez em quando param e hesitam, como se tivessem que lembrar que estão no meio de uma brincadeira. Ontem às três da manhã eu ainda estava acordado, e quase todas as luzes das janelas desse mesmo prédio vizinho estavam apagadas. Uma única luz tênue iluminava um pequeno quarto, e um homem solitário falava ao telefone. Parecia uma paródia de um quadro do Hopper – o sujeito sereno de terno e uísque na mão ao cair da noite substituído por um outro descabelado, de camiseta, mandando áudios urgentes na madrugada.

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Se tivesse que adivinhar qual a textura de uma guerra, diria que ela se faz sentir nos interstícios do dia. Diria que as pessoas seguem tocando as suas vidas, repetindo os gestos aos quais estão acostumadas, e que há alguns pequenos momentos, rápidos mas muito intensos, em que o caráter anacrônico desses gestos é desmascarado.

Quando as compras chegam, tiro o meu chinelo, e pego o tênis do lado de fora; o rapaz do supermercado, de luvas, me entrega a máquina do cartão. J me espera dentro da cozinha — eu pago, tiro os items, vou descartando as sacolas. Passo então as mercadorias para ela, tiro o meu tênis, deixo-o lá fora, coloco o chinelo de novo. J passa álcool 70 nos produtos, desinfeta as embalagens. Depois enchemos a pia da cozinha de água e detergente, e jogamos as frutas e verduras lá dentro – pimentões, bananas, mamões, cebolas, batatas, abobrinhas. Um lava com afinco, o outro seca, depois lavamos as mãos com cuidado. As frutas e verduras parecem ficar mais nítidas depois dessa lavagem, como se recebessem uma injeção de realidade corpórea. O traceado verde das abobrinhas fica mais intrincado; os acidentes nas cascas das batatas mais profundos e escuros. Mas não consigo achar essas frutas e verduras bonitas. Elas também parecem tingidas de algum fingimento essencial, como o desse silêncio lá fora, que tem todos os ecos da província mas que na verdade preenche uma cidade.

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Demorei até começar a ler livros que orbitassem em torno de guerras. Ainda não li Nada de novo no front, Ardil-22 ou Matadouro 5. Noto agora que uma boa parte da ficção que me atrai tem como pano de fundo um ambiente relativamente pacífico. Os autores que mais me comovem podem até ter passado por guerras em vida, mas a escrita deles está imbuída de domesticismo, dos pequenos dramas da burguesia.

Talvez isso tenha algo a ver com temperamento. Ou talvez tenha a ver com a percepção, sustentada por muito tempo, de que minha geração não teria que lidar com qualquer grande conflito ou convulsão. Na faculdade, criticávamos Fukuyama e seu famoso “fim da história”, mas no fundo, talvez fôssemos bem Fukuyamistas. Talvez toda geração seja um pouco Fukuyamista. É dificílimo imaginar algo além do presente. Em Chicago, no mestrado, havia um professor que dizia: o fascismo voltará à Europa em mais ou menos quinze anos, e será por causa dos fluxos migratórios. O ano era 2006; quando a aula terminava nós ríamos dele.

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Pude ver a paródia de Hopper na janela às três da manhã porque tinha ficado no telefone com um amigo. Ele acha que em pouco tempo haverá saques, assaltos, talvez invasões. “Deveria ter comprado uma arma”, ele disse. Falou a frase sem exaspero, com uma resignação cansada. Na boca de qualquer um, a frase soaria pitoresca, mas na dele não. Por razões que não vêm ao caso, a instabilidade é para ele menos uma preocupação do que uma premissa arraigada, e a sua placidez frente a viradas de rumo é quase reconfortante. Não faz grandes pronunciamentos sobre o estado do país, não manda recados histriônicos no whatsapp, não racionaliza tragédias. Tampouco desconversa sinais claros de deterioração. Ele toca a vida.

Nos perguntamos quando a pandemia iria acabar. Nisso talvez as guerras e a pandemia se pareçam: são eventos fechados, com aparente começo e fim. Há uma curva de ascensão, um pico, e depois supostamente uma queda. Depois da destruição vem o Plano Marshall, conferências em cidades cujo os nomes serão lembrados só por essas conferências, grandes gestos públicos de reconciliação.  

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Desde o ano passado tenho lido mais livros que orbitam em torno desses grandes conflitos. Não sei de onde vem o impulso; não faço grandes planos temáticos de leitura. Começou com A marcha de Radetzky, o épico de Joseph Roth sobre a decadência do império Habsburgo. Depois peguei Pós-guerra, de Tony Judt, e Tempestades de aço, as memórias de Ernst Junger sobre a Primeira Guerra — esses dois sigo lendo intermitentemente, entre trabalhos. Não aprendi nenhuma grande lição histórica com esses livros. O que mais ficou cravado na minha memória são os detalhes cotidianos. O estranho tremelique na cabeça que o Van Trotta pai adquire depois de descobrir que seu filho morreu numa batalha. A gulodice do médico (que também morre), o seu gosto infantil por salgadinhos. É isto um homem? foi o livro mais difícil de ler: às vezes ainda sinto um misto de náusea e tristeza quando me lembro da leitura. Mas até nele, não são as cenas mais pesadas que ficaram na memória. Lembro do velhinho nu, e o detalhe de seu cinto herniário; da forma em que, na hora de receber o pão, cada pessoa acha que o vizinho recebeu uma ração maior. Lembro do hábito do narrador de olhar o pulso para ver as horas, e levar um pequeno susto quando vê ali, em vez do relógio, “esse número tatuado em marcas azuladas sob a pele”.  

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Às vezes acho que nunca houve tanta desinformação como agora, que nunca o mundo esteve tão envolto em rumores. Mas se um vírus ensina algo é que não somos especiais. A casa na colina, de Cesare Pavese, se passa durante a Segunda Guerra. Corrado, um professor de colegial, se move para lá e para cá pelos campos do norte da Itália, vivendo um meio-termo entre sobreviver à destruição e manter algo de seu cotidiano; parece mais irritadiço do que chocado pelas bombas. Simpatiza com a resistência, mas não o suficiente para se juntar a ela. Em cada casa que entra, há um burburinho, esse ruído diário de catástrofes: a guerra está só no começo, a guerra já está no fim; os líderes vão acertar a paz; não, agora haverá mais ataques. A curva está subindo, daqui a duas semanas deve chegar o pico, a curva já desceu. Em maio acaba a quarentena, em julho, ou então setembro — em Hong Kong o vírus já voltou, sofreu mutação, e ficaremos presos até o ano que vem.

Sabemos do começo das catástrofes, em teoria: sabemos da invasão da Polônia e do morcego no mercado. Mas suspeito que as catástrofes têm também começos mais privados e difusos. Antes de passar álcool 70 e usar o tênis só para pisar lá fora, eu chegava cedo à Cobal, para escolher três pacotes de água mineral de 1,5 litro, e fitava os rótulos com atenção para ter certeza que a fonte da água fosse de fora do estado do Rio de Janeiro. E antes disso, em 2010, fiquei preso em Paramaribo depois que o vulcão Eyjafjallajokul entrou em erupção na Islândia. Todo dia, de manhã, eu me levantava, saía do hotel e ia ao escritório da KLM, para perguntar se tinham notícias de quando os vôos seriam reabertos; depois caminhava um pouco pela margem do rio da cidade, comprava uma cerveja e sentava num quiosque; e por semanas segui assim – lembro de perguntar-me se devia procurar um apartamento mais permanente, e como seria viver no Suriname.

No começo de Pós-guerra, Judt relata um período de mais ou menos seis meses após o término oficial da Segunda Guerra – um momento em que os governos dos Aliados, após expulsarem os nazistas de certas partes do leste europeu, fizeram vista grossa e deixaram o pau comer. Rivalidades locais e vendettas tiveram uma janela de tempo para que pudessem ser consumidas da forma mais bárbara possível. Muita gente morreu nesse período. Qual a sensação de estar no meio disso tudo e alguns meses depois ver um chefe de Estado sorrindo, discursando sobre a paz reinante entre as nações, falando de reconstrução, dizendo que a guerra acabou?

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Um dado do mesmo livro: “Clínicas e médicos em Viena reportaram que 87 mil mulheres foram estupradas por soldados soviéticos nas três semanas que se seguiram à chegada do Exército Vermelho na cidade”. Em Berlim, durante apenas uma semana, o número foi um pouco maior; embora Judt ressalte que em ambos casos os dados estão subestimados, por causa de subnotificações. Passo os olhos pelos números de mortos da Covid-19 e é difícil extrair qualquer significância — é como tentar sentir os bilhões de anos que a luz das estrelas leva para chegar à nossa vista. Outra similaridade, então: os números nos dizem muito e ao mesmo tempo pouco. Para dimensionar qualquer coisa, preciso pensar no pai da minha amiga que está agora na UTI; preciso pensar que, em algum bairro de Viena, existem pessoas concebidas por aqueles soldados soviéticos que tiveram que crescer sem pai, para depois levar uma vida prosaica, pagando suas contas, indo a jantares, fazendo esses gestos do dia a dia que todos fazemos.

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Em A casa na colina, não há muitas menções a datas, de forma que o leitor compartilha algo da confusão dos personagens – não é possível distinguir entre o que é rumor e o que é verdade sobre o possível término da guerra. A narração de Pavese tem um tom melancólico, e o conflito armado existe no livro mais como sombra do que como ação, mas ainda assim há um elemento de suspense, de modo que, como leitor, me vi torcendo, com uma ansiedade inesperada, para que o narrador chegasse a bom porto e ficasse a salvo. Mas o livro acaba no meio da guerra. O livro acaba e a guerra continua, e ao ser pego de surpresa por esse gesto me enchi de admiração pelo autor, mas também tive uma sensação sombria.

“Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos.” Natalia Ginzburg escreve em Léxico familiar. “Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera. De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, nem casas destruídas, nem fugas ou perseguições, explodiram minas e bombas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruínas, de soldados e de fugitivos. E não havia mais ninguém que pudesse fingir que nada estava acontecendo, fechar os olhos e tapar os ouvidos, enfiar a cabeça embaixo do travesseiro, não havia.”

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Hoje o dia está bonito de novo. Uma sequência de dias ensolarados e cheios de brisa como nunca vi. No sábado passado (acho que foi sábado, perdi a conta dos dias), uma família de miquinhos veio à nossa janela e subiu a árvore do pátio. J tirou algumas fotos. Havia o mesmo silêncio bucólico lá fora. A mãe tinha dois filhotes no cangote, e na foto ela saiu com uma cara de terror, como se tivesse assustada, embora eu saiba que deve haver alguma outra explicação para essa expressão dela. No telefone, na noite em que eu fiquei acordado até as três, eu e meu amigo lamentamos uma festa que havia sido cancelada. “Quando tudo acabar vai ser ainda melhor”, ele me disse, e me aferrei à sua frase, dormi com ela. Quero acreditar nesse fim. Há pouco, porém, relendo uma passagem do livro de Judt, trombei com uma piada alemã da época da segunda guerra — uma piada algo amarga e sem graça, que de certa forma faz jus ao estereótipo da falta de humor teutônico. “Aproveitem a guerra – a paz será terrível.”

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Alejandro Chacoff nasceu em Cuiabá, em 1983, e mudou-se para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Viveu no Chile, Inglaterra e Argentina, antes de voltar para radicar-se no Rio de Janeiro, onde desde 2016 trabalha como crítico de literatura e ensaísta da revista piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker, n+1, The Guardian e The Atlantic. Apátridas, publicado pela Companhia das Letras, é o seu primeiro romance.

 

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