Diários do isolamento #21: Luisa Geisler

12/04/2020

Diários do isolamento

Dia 21: Matemática exponencial a vácuo

Luisa Geisler

 

Começou com uma amiga. Semana passada, eu precisava de materiais que tinha emprestado. Ela brincou que faria questão de passar desinfetante para devolver. Por quê? Ela achava que estava com coronavírus. Ela e o marido tiveram febre e crises de tosse seca, ficaram mal. Tentaram fazer o teste, mas no Brasil?

Enviei um Rappi para fazer o transporte. Parêntese rápido: obrigada a todos os profissionais de entrega. Quando falamos de empregos essenciais, também falamos dos altamente precarizados — caixas de mercado, lixeiros, limpadores de rua. Tenho feito questão de pagar muito além do que os aplicativos propõem, porque precisamos de vocês. Vocês estão na linha de frente também. Obrigada.

Combinamos a entrega, fiz o pedido no aplicativo, servi um copo de cerveja para mim e Guilherme, porque tínhamos uma ligação via Zoom com um casal de amigos jornalistas em Milão. Estavam em Milão antes de tudo isso. Conversamos.

Falamos de quarentena, de como lá você precisa de um documento gerado online para poder sair de casa, um documento que especifique a rota. Do lado brasileiro, recomendamos as séries Chernobyl e Tiger King para esquecer da vida real. Do lado italiano, recomendaram Fleabag e Love is Blind. Falaram das matérias a respeito de pessoas que quebram a quarentena por motivos absurdos — o casal de idosos que saiu para colher aspargos, a velhinha se perdeu, o marido teve que ir à polícia para localizá-la e, após encontrarem-na, foram multados. Contam dos padres que têm morrido por não abrir mão de fazer a extrema-unção.

O interfone toca. É a entrega.

Como eu e Thaís estamos no meio de uma teoria conspiratória a respeito de Elena Ferrante, a best-seller italiana (supostamente idosa) que escreve sob pseudônimo, poder ter morrido de coronavírus e ninguém saber, Guilherme desce para pegar meus livros. Talvez fosse efeito da cerveja, mas Thaís se comprometeu a mandar um e-mail para a editora italiana de Ferrante.

Guilherme volta ao apartamento chateado. A entregadora tinha vindo de bicicleta, “uma senhorinha”. Estava incomodado. Sentou no sofá contando a respeito, porque a senhorinha tinha tido contato com a minha amiga, a que provavelmente estaria com corona. Elas haviam passado o pacote de uma mão para outra. Os amigos do outro lado disseram que mais cedo ou mais tarde as pessoas teriam que se tornar números.

Depois desse dia, alguém veio falar comigo. Perguntando se eu conhecia uma pessoa, com um perfil no Facebook. Eu não fazia ideia de quem era, mas éramos sim amigas. Às vezes conheço pessoas em eventos literários, às vezes jornalistas me adicionam, organizadores de eventos, professores, leitores, escritores e aspirantes, alguém que quer acompanhar as novidades. Meu Facebook não é muito pessoal. Notei que a pessoa tinha amigos em comum, autores de literatura brasileira contemporânea. Além disso, tinha fotos com uma filha, de uns doze anos. Talvez conhecesse, mas não lembrasse. Respondo:

— Não sei quem é, não. Acho que não.

­— Ah — vem em resposta.

— Por quê?

— Ela morreu de corona e achei que tinha que avisar.

Eu não sabia quem era. Mas um dia talvez eu soubesse. Tivesse sabido. Ela gostava de literatura brasileira contemporânea, e nós somos tão poucos já. Aperto.

Depois de minha amiga, o caso de um prematuro no Rio Grande do Norte — o mais jovem morto de coronavírus, com quatro dias de idade. Meu sobrinho nasceu em 14 de fevereiro. Ele está bem, os pais extremamente cuidadosos. Mas por algum motivo, senti um aperto como se estivesse sendo embalada a vácuo. Meu coração embalado a vácuo, sem nenhum espaço para se mover.

Dos quadrinhos, estou em poesia agora. Não sei se são livros que sempre disse “tenho que ler” ou “quero ler, mas não é a prioridade”. Não entendo como minhas leituras têm funcionado. Mas estou avançando devagar nos Poemas, de Wislawa Szymbroska, Prêmio Nobel de Literatura em 1996, em tradução de Regina Przybycien. Um poema dela tem ressoado com este momento e comigo:

 

Sob uma estrela pequenina

Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.

Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.

Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.

Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.

Me desculpem a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.

Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.

Verdade, não me dê excessiva atenção
Seriedade, me mostre magnanimidade.

Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.

Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.

Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,

e depois me esforçar para fazê-las parecer leves

 

Nossos amigos recomendaram não pensar nos números. Números. Não pensar nas pessoas. Não pensar no prematuro, não pensar na mulher-com-a-filha-que-era-minha-amiga-do-Facebook-e-de-onde-é-que-eu-conheço. É o único jeito de não enlouquecer. Ajudar como puder, proteger como puder. Pensar demais nas histórias pessoais vai dificultar muito, a gente vai lembrar dos que vivem. Pensar nos números como estatísticas ajuda, mas desumaniza ­— e eu nem sei se consigo.

A sensação de que está sim, perto. É real. Alguns me disseram que o público em geral só vai se juntar à seita do texto anterior quando começar a acontecer com o vizinho, o amigo, o familiar. Estou cada dia mais fiel na minha seita, infelizmente. Torcendo para não terminar como Jonestown.

Na Itália, foram 610 mortos só em 8 de abril. Nos Estados Unidos, 1973 mortos no mesmo dia. Num só dia. Em 24 horas. No feriado de Páscoa, o Brasil chegará ao nosso primeiro mil. Vi fotos de pessoas lotando o Mercado Público de Porto Alegre para comprar peixe para a sexta-feira santa. Matemática exponencial transforma as pessoas em número. E eu queria conseguir me proteger como se estivesse a vácuo, mas sem a sensação de aperto.

Eu odeio crescimento exponencial.

(Para terminar em uma nota mais animada, os amigos com quem conversei em Milão são Braitner Moreira e Thais Cunha. Tenho acompanhado a situação por eles e alguns de seus textos fenomenais, como: “O esporte sem multidões” e “Coronavírus: padres brasileiros isolados na Itália celebram missas e atendem fiéis online”. Thaís de fato enviou um e-mail para a editora italiana da Elena Ferrante para confirmar que estaria bem. Está.)

 

***

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges PolessoMarcelo Ferroni e Samir Machado de Machado a ser lançado em breve. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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