Diários do isolamento #25: Jarid Arraes

16/04/2020

Diários do isolamento

Dia 25

Jarid Arraes

 

Não sou otimista e detesto sentir esperança. Tento passar a maior parte do meu tempo no presente, para o futuro só olho rapidinho, espiando pelo canto entreaberto das portas e cortinas, esperando o razoável, o que dialoga com o material. Aquilo que será futuro apenas quando o presente chegar lá.

A última vez em que senti real esperança foi horrível. Nas últimas eleições, vendo as pessoas trabalhando nas ruas para conversar com quem pensa diferente, eu fui entrando numa névoa. Caí despreparada. No dia da eleição, até pouco tempo antes de serem finalizadas as contagens, eu senti esperança. Um sentimento que tomava meu corpo inteiro, algo que me dizia, é possível. É possível. Mas dentro daquela realidade, no presente, não era. Era tarde. A fantasia que se alojou no meu corpo me fez repetir várias vezes, até a chegada da noite e depois: eu odeio ter esperança.

Olhar o futuro próximo com otimismo me deixaria enrolada na vulnerabilidade. Prefiro não me deixar abraçar pelo otimismo, porque então meu corpo terá menos movimento. E quanto mais alta a esperança, mais difícil enxergar o outro lado.

Estou em isolamento social há mais de mês. Não saí nenhuma vez. Mas presto atenção na realidade. Nos carros, nas pessoas, nas portas abertas. A realidade é um vírus tomando conta de muitos espaços. Mentais, inclusive. Não consigo sentir que as coisas podem ficar bem, que tudo pode dar certo, postar nas redes sociais imagens e textinhos engraçados sobre os beijos trocados depois do isolamento, sobre o corpo que vai dançar, e que, em breve, dizem, voltará a trocar fluidos, bactérias, pele morta, carinho.

Leio tudo isso e não sorrio.

Algumas vezes penso que quem nunca sofreu bullying, quem se dá muito bem nas baladas e bares, que essa gente toda não tem preparo para o pior da vida. Não cresceram já isoladas em quartos que eram mundos inteiros, não sabem o que é sair com amigos e ser a pessoa mais desencaixada do grupo, não são cobertas pela grossa intimidade com a solidão.

Leio todas as piadas e não sorrio.

As vezes sinto que há rancor nos meus olhos. Penso, deixa as pessoas, penso, elas só querem sair e tomar sol, penso, elas querem os amigos, a família, os desconhecidos. Mas eu tenho o couro quente e talvez por isso não esteja esperando que daqui a alguns meses os beijos voltarão ao socialmente aceitável; talvez por isso eu não assista aos vídeos e pense, que lindo os vizinhos cantando em seus retângulos, que maravilhoso o ator que faz o espetáculo para os que mal conseguirão ouvir, a menos que ele arregace suas cordas vocais. Mas, eu argumento, é tudo necessidade de expressão. Como posso sentir rancor porque as pessoas se expressam de um jeito diferente do meu?

Ainda assim não sorrio.

Quero o presente, o presente me diz coisas sinceras, o presente me equilibra, o presente me permite as estratégias para quando o pior chegar.

E há algum tempo tem sido cada vez mais difícil esperar o melhor dos outros.

Quando olho pela varanda e vejo tanta gente aglomerada, tanta gente junta em festas, amigos que sei que visitam amigos só um pouquinho só dessa vez porque estou triste porque está pesado porque tinha essa coisa pra entregar porque a gente mora perto, quando olho para tudo, para todos, meu corpo se tranca. São cadeados e chaves e mais travas de segurança, porque a última vez em que senti esperança, aquela última vez em que senti esperança, de verdade esperança, ela foi uma vez que me ensinou uma lição muito boa sobre arrombamentos.

Mas foi também naquele mesmo final de ano que melhor entendi a esperança e a fé.

Eu estava no Cariri, sertão do Ceará, fazendo fotos das ruas, das pessoas, dos cheiros, e me relacionei com muito otimismo. Não meu, mas dos católicos dentro das igrejas enormes que fotografei, do pipoqueiro na calçada da Igreja dos Salesianos, que se mantinha no posto, mesmo sem a presença dos romeiros que comprariam as pipocas. Na verdade, compreendi a romaria pela primeira vez. Aquilo que me ensinaram ser somente miséria, pessoas doentes, viagens de torar o espinhaço, de repente ela me disse, eu também sou amor. Eu enxerguei muita vida. A romaria é a pura esperança subindo a ladeira do Horto, deslumbrada com a estátua gigante do Padre Cícero. Afeto, vida, movimento.

Não deixei de ser alguém que não espera a proximidade do melhor. Continuo a mesma mulher que já foi a garota e que ainda é a mulher que até gosta da solidão. Não quero que meu corpo seja afogado, outra vez, pelo sentimento tão imenso que é a esperança. Mas, ainda que de vez em quando meu olhar para essas ações seja amargo, eu compreendo quem faz piada e diz que os beijos em grupo vão acontecer, que o corpo atrasado no percurso de outro corpo vai explodir de tanto contato. Eu entendo quem fala, que saudade de rebolar, de sentar na mesa de plástico do bar, quando o isolamento acabar eu vou fazer tudo que hoje me parece impossível. Isso é esperança.

Eu não sorrio para isso, mas estou viva.

Ontem postei nas minhas redes uma foto que tirei de uma pessoa na Igreja dos Franciscanos, em Juazeiro do Norte, minha cidade, e demorei alguns minutos entrando novamente em sua expressão facial. As mãos cobrindo parte do rosto, a cara de angústia, mas os joelhos dobrados, as palavras murmuradas na direção do altar cheio de estátuas, brilhos e cores.

Eu soube que precisava eternizar o momento em foto. Sentindo desconforto, pensei, nossa que fotografia linda. Eu nem sou fotógrafa, eu só queria registrar o Cariri para escrever melhor meu livro, para me encher de mais referências. Mas que sorte.

E do lado de fora da igreja, romeiros chegavam. Ônibus buzinando e me incomodando com a zuada. Mãe, filha e neta juntas. Uma mulher idosa descalça, pagando promessa. Uma aglomeração de pessoas que me dizia, tente observar.

Hoje é diferente. Vi imagens das igrejas do Cariri totalmente vazias. Em uma delas, as bandeiras dos estados do Nordeste foram deitadas nos bancos de madeira que, sem coronavírus, estariam lotados de romeiros. Apesar de melancólico, as bandeiras eram um ato de esperança.

Mas não pude sorrir.

Esse sentimento parece algo que eu não conseguiria alcançar, ainda que tentasse. Hoje vou pra lá e pra cá entre lutos e paciência. Triste porque o álbum novo da Lady Gaga não foi lançado — no momento ela adiou o álbum e arrecada milhares e milhares numa campanha para ajudar as pessoas que sofrem com o coronavírus —, triste porque os musicais foram adiados indefinidamente, triste porque sinto saudade de ir a um restaurante e postar fotos dos pratos no Instagram. Triste pelos rituais bobos da vida de antes.

Triste porque não acredito que em breve as pessoas vão alcançar o que esperançam.

Mas uma coisa que eu tenho é paciência para aguardar o futuro possível.

Durante o isolamento, foram publicadas minhas respostas a um questionário Proust (https://gamarevista.com.br/pessoas/questionario-proust/escritora-jarid-arraes/) e à pergunta qual talento você gostaria de ter?, respondi que o das histórias possíveis. Hoje, enquanto ouço meu namorado tentando confortar minha sogra pelo celular, meu cachorro ansioso porque não corre e não brinca com outros cães, as notícias cheias de gente que não leva a pandemia a sério, enquanto ouço e vejo e sinto tudo isso, eu percebo que as histórias que eu conto são sempre as possíveis. As histórias que conto pra mim, as que escrevo. Por mais insólitas, ou ainda que descrentes, são possíveis.

Enxergo isso e sorrio.

Enquanto o possível acontece agora, no presente, enquanto o possível se torna presente ao chegar um novo dia, e outro, e outro, eu jogo The Sims 4 inventando vidas diversas, jogo Mortal Kombat 11 e xingo, dou risada, dou golpes completamente absurdos e mesmo depois de ter o crânio esmagado, a personagem que escolho para lutar continua viva, dando golpes muito mais fortes.

Sim, há mais de um mês só como comida congelada e carboidratos. Coloco milho em tudo. Eu bebo chá. Vejo filmes de Bollywood com muita música e dança — recomendo Bajirao Mastani e Rab Ne Bana Di Jodi, dois dos meus favoritos.

Antes que eu sinta saudade demais do que já foi e nunca mais será, arrasto meus olhos para o presente.

Sim, eu sorrio quando me centro no presente.

Porque é agora, nesse dia, enquanto escrevo, que consigo perguntar: assim como fotografei aquela pessoa cheia de angústia e fé, como capturar, ao mesmo tempo, o possível e a esperança?

 

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