Diários do isolamento #26: Eliana Sousa Silva

17/04/2020

Diários do isolamento

Dia 26: A minha voz e a de tantas outras

Eliana Sousa Silva

 

Uma semana intensa de trabalho no front da campanha “Maré Diz Não ao Coronavírus”. Entrega de cestas básicas e kits de higiene e limpeza; produção de refeições para a população de rua e também para pessoas que não têm como cozinhar em casa, pois são idosas, moram sozinhas e têm problemas de saúde; organização de mulheres para se revezarem na preparação da comida e, ainda, das costureiras para produzirem máscaras que serão distribuídas a toda população. Essas atividades, dentre outras, concretizaram nossa intenção de chegar às famílias mais pobres das dezesseis favelas da Maré nesses tempos impiedosos. 

Tenho oscilado bastante de humor esses dias. A indignação de ver a falta de políticas públicas básicas para as populações das favelas me deixa muito aborrecida. A verdade é que teremos de alcançar — nesse momento de crise e, portanto, de urgência — uma dimensão sem precedentes de ajuda às pessoas. Caso contrário, os danos serão profundos e irreparáveis em algumas situações.

Tenho coordenado, junto com outras mulheres da Redes da Maré, uma ação que envolve mais de quarenta pessoas trabalhando diariamente — motoristas, carregadores de cestas de alimentos e kits de higiene e limpeza, recepcionistas, digitadoras, faxineiros(as) e ajudantes para as entregas porta a porta com os doze carros que fazem parte da frota da “Maré diz Não ao Coronavírus”.

Minha rotina começa às 7h30, quando me dirijo ao Centro de Artes da Maré (CAM), na Nova Holanda, e termina somente perto das 19h, quando retorno para casa. São dias longos e desafiadores. Preciso conjugar os cuidados para não contaminação usando máscaras e luvas o tempo todo, e mantendo a devida distância entre as pessoas que estão dentro do espaço e os inúmeros moradores que vêm em busca de uma cesta. 

As histórias de vida com que tenho esbarrado todos os dias na Maré, neste momento, dão uma visão muito realista do Brasil que uma parcela da sociedade “desconhece” e/ou não quer enxergar. É como se eu desvelasse e dialogasse, em espiral, com as muitas situações-limite que são colocadas para certos grupos sociais e os deixam sem nenhuma proteção. O movimento de oscilação entre sentir e, ao mesmo tempo, me entender nesse lugar de dar respostas às muitas questões que afloram dessa realidade — que também me forjou —  às vezes me confunde.

Não posso deixar de pensar na demarcação clara de momentos de minha trajetória em que ausência e abandono conformaram a minha existência, dando a medida exata do que vejo estampado em muitas das vidas que hoje cruzam meu caminho.

Uma mulher me procurou em busca de uma cesta de alimentos. Fiquei muito impressionada com as marcas visíveis deixadas no corpo dela pela falta de condições materiais de sobrevivência, a fome tendo batido de forma dilacerante. A pele ressecada, os pés com rachaduras, os dentes com cárie, entre outras coisas. Eu a conhecia desde a adolescência e fiquei perplexa com o quanto ela havia envelhecido. Como o seu sorriso e a delicadeza no falar permaneciam os mesmos, mas contrastavam com o olhar que agora expressava tristeza e ansiedade. Ela me falava do tempo em que comprava no armarinho do meu pai na Nova Holanda. Lembrou das reuniões que fazíamos no pátio da única escola de ensino fundamental daquela época, organizadas pela Associação de Moradores, da qual eu era presidente.

De repente, essa mulher na minha frente me conta agora que já está com quase sessenta anos e que o marido, chegando aos setenta, está desempregado há cinco. Ele é carpinteiro e está vivendo de serviços esporádicos, bicos, e ela, faxineira, foi dispensada das casas onde trabalhava desde que começou a quarentena. Os dois estão sem renda há algumas semanas. Ela me diz que no dia anterior não tinha nada para comer e uma pessoa que sempre a ajudava tinha oferecido arroz e ovo.

Fiquei olhando aquele rosto, a angústia visível, nítida, misturada ao constrangimento de estar diante de mim pedindo algo para comer. Enviamos a cesta de alimentos e o kit de higiene e limpeza para a residência dela, e o motorista retornou perplexo com as condições precárias da casa. Estava preocupado com o fato de que ali moravam duas pessoas de idade necessitando de cuidados de saúde. Essa história me acompanhou alguns dias e me levou para muitas lembranças da minha infância e adolescência ali na Nova Holanda. E certo incômodo se fez presente quando eu pensava que poderia estar nas condições daquela mulher, já que era ali que havíamos nos socializado e descoberto a vida e tantas outras coisas.

Mas logo outra mulher vem falar de sua urgência por receber a doação. A filha perdeu o emprego, o patrão a dispensou antes mesmo do início da pandemia e do isolamento. Os olhos dela se enchiam de lágrimas quando falava da filha, que, segundo ela, tinha se prostituído a fim de ter dinheiro para pagar o aluguel. Enquanto falava, o olhar não se fixava. Não conseguia nos encarar pela vergonha que sentia pela filha. A minha voz, a voz dela e de tantas outras mulheres, neste tempo tão duro de pandemia, ecoa, como a voz de Conceição Evaristo, “versos perplexos/ com rimas de sangue/ e fome”. Sinto uma tristeza gigante ao colher essas histórias e pensar que a roda da vida faz seu próprio giro.

 

***

Eliana Sousa Silva nasceu em Serra Branca (PB) e morou na Maré durante 25 anos. É autora do livro Testemunhos da Maré (Aeroplano, 2012) e fundadora da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, da qual é diretora.

A Redes da Maré promove mais de vinte projetos de desenvolvimento local, arte, cultura e educação nos territórios da Maré, com destaque para o Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré, o Programa Criança Petrobras na Maré e o movimento “A Maré que Queremos”, com mobilização social e fórum permanente para debater a melhoria da qualidade de vida nas comunidades da região.

Recebeu diversos prêmios, entre os quais o Empreendedores Sociais, da Ashoka (2000). Atualmente é também consultora do Canal Futura e da Associação Cidade Escola Aprendiz, de São Paulo, e está escrevendo um livro sobre a criação da Redes da Maré, que será publicado pela Zahar.

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