Diários do isolamento #43: Jessé Andarilho

04/05/2020

Diários do isolamento

Dia 43

Jessé Andarilho

 

A “gripezinha” veio forte e bateu bem perto da minha casa. Já tenho nomes, muitos nomes, além dos números. Tive amigos morrendo sem testar, tive amigo que testou e deu negativo, mas mesmo assim foi parar no hospital com falta de ar, e também tive amigos que frequentaram o Baile do Corona testando sua imunidade e foram parar no hospital, sem ar.

Esse final de semana também teve pagode, baile funk, festa rave e protestos a favor e contra o presidente da Republica. Tá sinistro. Muitos doentes na rua.

Como eu não tenho saído de casa, vou contar pra vocês o que aconteceu comigo na rede social chamada Facebook. Não sou muito fã de tretar nas redes, mas tiro uns dias pra testar meu poder de argumentar.

Um amigo fez uma postagem falando sobre as pessoas que estão fazendo doações e postando fotos nas redes entregando cestas básicas e quentinhas/marmitex.

O cara criticou as pessoas que estão doando, fez aquele textão com direito a citações bíblicas e o caramba. Falou que quando o braço direto faz alguma coisa maneira, nem o esquerdo precisa saber.

Humildemente respondi que as pessoas que estão recebendo as doações não estão nem aí se tem alguém postando fotos. O importante é que ela vai comer.

Foi aí que a coisa começou a esquentar. O cara escreveu que concordava comigo em parte, mas disse que as pessoas só estão ajudando porque estão querendo aparecer, e isso não é legal.

Gente, vocês já viram o trabalho que a Cufa está fazendo? Já viram quantas famílias estão recebendo alimentos e produtos de limpeza nesse momento em que muitas pessoas perderam emprego e a despensa está vazia?

O pessoal da Cufa tira foto?

Claro!

Se não fossem as fotos, como o patrocinador iria conferir onde as doações deles estão chegando?

Já viram quanta coisa o pessoal do Voz das Comunidades e do Coletivo Papo Reto já conseguiu para o Complexo do Alemão?

O Rene Silva e o Raull Santiago tiram fotos? Claro!

Já viram o que o Thiago Firmino vem fazendo no morro Santa Marta para combater o vírus? O cara conseguiu aquela roupa tipo Caça Fantasma e, junto com outros amigos do morro, vai higienizando e botando o Corona pra ralar das ruas da favela. Tem foto? Claro.

E o WG do projeto Cultura na Cesta? O Felha, o Ricardinho e o Jota da Cidade de Deus? Já viram quantas cestas básicas eles já entregaram na Zona Oeste?

Eu quero é que mais e mais pessoas apareçam em fotos, vídeos e em matérias de jornais. Quanto mais pessoas aparecerem, mais pessoas vão comer.

Se o braço esquerdo não sabe que o direito ajudou alguém, é porque ele não tá nem aí. Ao invés de ficar nessa “queda de braço tirando o corpo fora”, não é pra criticar o trabalho de quem faz.

Criticar pessoas nas redes também é vontade de aparecer.

Se for pra aparecer, que seja ajudando.

 

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog