Diários do isolamento #5: Eliana Sousa Silva
Os “Diários do isolamento” são parte do projeto Leia Em Casa — que está oferecendo uma série de conteúdos especiais para quem vai permanecer em casa nos próximos dias — e pretendem fazer um registro coletivo de uma experiência nova, inesperada, cheia de incertezas e que ainda não sabemos quanto tempo durará.
A ideia é tentar diminuir a distância entre as pessoas, aproximando vozes distintas, de áreas, opiniões e idades variadas, como uma conversa em que os relatos se complementam. A cada dia um autor diferente traz para o leitor um texto sobre a vivência deste momento difícil em que a união é fundamental para mantermos a saúde física e mental. Participam da do projeto Jessé Andarilho, Elvira Lobato, Fábio Moon, Jarid Arraes, Eliana Souza Silva, Alejandro Chacoff e Luisa Geisler.
E nunca é demais lembrar: em tempos assim, a leitura e a informação são essenciais — e o livro segue sendo a melhor companhia.
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Diários do isolamento
Dia 5: O despertar pelo coronavírus
Eliana Sousa Silva
O processo de me isolar em casa de forma compulsória aconteceu após o meu retorno de Londres, no dia 11 de março, onde fui participar do Festival Mulheres do Mundo — WOW —, que completava dez anos. Até a minha saída do Brasil, no dia 2, não havia ainda uma indicação clara do que estava por vir.
Obviamente as notícias sobre o que estava ocorrendo na China e na Itália sobre a contaminação pelo coronavírus já me causavam alguma preocupação e eu me perguntava quando teríamos algum reflexo disso por aqui. O que se anunciava para o Brasil? Por que as autoridades brasileiras não diziam nada? O que estávamos esperando?
Bem, chegando em Londres, logo nos primeiros dias comecei a me dar conta de como a percepção das pessoas na Europa sobre o que poderia acontecer em suas rotinas era outra. O surto na Itália alarmava os países da região e muitas notícias da França abordavam o problema e a necessidade de respostas rápidas para conter um possível contágio em massa e, em conseqüência, muitas mortes. Já circulavam, inclusive, boatos sobre o cancelamento do WOW, marcado para o fim de semana entre 6 a 8 de março, pois outros países vizinhos à Inglaterra já estavam tomando medidas e suspendendo eventos artísticos e culturais.
Ou seja, os nove dias que passei em Londres deixaram meu coração inquieto. Era um sentimento que eu não sabia traduzir com palavras. Cumpri uma rotina de trabalho, confesso, com algo preso na garganta que não conseguia expressar. Meu desejo era voltar para o Brasil e entender se alguma coisa havia mudado. E olha que estava bem claro para mim que o governo da Inglaterra, comparado a outros países da Europa, não adotava uma postura severa, mas cautelosa, eu diria.
No avião voltando para o Rio de Janeiro percebi que a situação estava se complicando. Vários brasileiros estavam usando máscaras. Um casal próximo ao meu assento estava com uma criança de colo e, antes de se acomodarem, a mulher pegou um lenço umedecido e começou a passar em todas as partes das cadeiras onde ficariam. Durante o voo a criança teve febre e o alto-falante perguntava se havia na aeronave algum profissional da área de saúde. Duas médicas apareceram, uma brasileira e outra estrangeira. Olharam a criança, verificaram a febre e passaram um medicamento.
Não consegui dormir nas doze horas de voo observando o que poderia acontecer com meus vizinhos de assento. A opção foi ler textos que eu precisava revisar para uma publicação da Casa das Mulheres da Maré. A chegada no aeroporto foi um misto de alivio e apreensão. O que me esperava no Brasil, se já saí da Inglaterra com a indicação de que deveria permanecer em quarentena de catorze dias por ter viajado ao exterior?
Ainda tinha dúvidas sobre como as coisas iriam transcorrer, pois na realidade eu teria outra viagem à Europa no final de março. Dessa vez iria a Barcelona, para um compromisso com a coreógrafa Lia Rodrigues, por conta dos 25 anos da sua companhia de dança.
Mas quando acordei em casa, na quinta-feira, dia 12 de março, entendi que o cenário havia mudado. Um medo real já se fazia presente e isso era perceptível nas mensagens que eu começava a receber no celular. As pessoas perguntavam a respeito da minha viagem e se eu sabia que tinha de me isolar por duas semanas. Eu dizia que estava sabendo e que, óbvio, ficaria em casa. Uma resposta que trazia a certeza de dias desconhecidos e sem a minha rotina de idas à Maré e a São Paulo, como fazia todas as semanas.
Pronto. Logo começaram a pipocar notícias de casos suspeitos de pessoas contaminadas pelo coronavírus em vários países e até no Brasil. De repente, ouço a declaração pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de que estamos diante de uma pandemia e o mundo precisa reagir para não termos uma escalada incontrolável de mortes.. O que estava por vir?
Foi quando comecei a ler para tentar entender de fato o que estava acontecendo. Percebi então que, de forma desatenta, eu ainda não tinha incorporado nos meus pensamentos, muito menos no meu corpo, os possíveis efeitos práticos e simbólicos de um distanciamento das pessoas em função das circunstâncias de algo que nos atingia em escala mundial.
Como seria a minha vida? Estava de quarentena, mas era evidente que o isolamento teria de se estender por um tempo indefinível. O fato é que eu não tinha nenhuma perspectiva de curto prazo de encontrar a família: meu pai de 85 anos, meu irmão, minhas quatro irmãs, meus três filhos, meus três netos — um deles tendo acabado de nascer, em 25 de fevereiro. Tampouco poderia ver as minhas amigas e os meus amigos.
Mas outras fichas começam a cair a partir desse momento. Como alguém que cresceu na Nova Holanda, uma das dezesseis favelas que formam a Maré, no Rio de Janeiro, um pensamento começa a se repetir dentro de mim. Um pensamento em relação aos moradores de favelas e periferias. Fico imaginando como será a circulação da população nas ruas e, ainda, como poderia acontecer isolamento e distanciamento das pessoas se as casas não permitem esse tipo de restrição.
Daí, não parei de pensar no solo fértil que as favelas e as periferias poderiam ser para a contaminação dos idosos — só na região da Maré temos em torno de 10 mil pessoas com mais de sessenta anos. Mas contaminação também das pessoas que já possuem algumas vulnerabilidades por terem doenças respiratórias, hipertensão e diabetes, ou dos que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, uma parte delas moradores de rua.
Ou seja, que desafios tínhamos pela frente? Como ficariam as atividades dos projetos sociais que acompanho pela Redes da Maré? E as pesquisas que estou coordenando em São Paulo para o censo nas favelas de São Remo, Jardim Keralux e Vila Guaraciaba — parte das minhas atividades como professora visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP?
São tantas as indagações e questionamentos que comecei, com muitos contornos e inflexões objetivas e subjetivas dentro de mim, essa jornada, esses diários, diretamente da minha casa: meu lugar de refúgio e aconchego, de onde tenho a sorte de passar para os próximos capítulos dessa quarentena.
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Eliana Sousa Silva nasceu em Serra Branca (PB) e morou na Maré durante 25 anos. É autora do livro Testemunhos da Maré (Aeroplano, 2012) e fundadora da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, da qual é diretora.
A Redes da Maré promove mais de vinte projetos de desenvolvimento local, arte, cultura e educação nos territórios da Maré, com destaque para o Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré, o Programa Criança Petrobras na Maré e o movimento “A Maré que Queremos”, com mobilização social e fórum permanente para debater a melhoria da qualidade de vida nas comunidades da região.
Recebeu diversos prêmios, entre os quais o Empreendedores Sociais, da Ashoka (2000). Atualmente é também consultora do Canal Futura e da Associação Cidade Escola Aprendiz, de São Paulo.
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