Diários do isolamento #65: Jarid Arraes

15/06/2020

 

Diários do isolamento

Dia 65

Jarid Arraes*

 

Não queria levantar da cama. Ficaria duas horas fingindo que acordei, ensaiando a vida que é, todos os dias, a mesma coisa e, também, uma coisa bestial. Bicho que me pega e sacode para os lados com os dentes. Bicho isolamento, esse que eu estou criando dentro de casa; parece que tirei do mato e não tem mais nenhum bicho como esse em qualquer outro lugar. Crio sozinha o isolamento social.

Não queria olhar as notícias. Passaria duas horas rolando a timeline do Twitter, lendo o comércio que volta a funcionar, os shoppings que são abertos, as pessoas espragatadas umas contra as outras dentro dos ônibus. Em uma das fotos que vi, todos os braços que seguravam as barras eram braços de pele marrom. As peles brilhavam, suando luz.

Ainda não voltei aos transportes públicos, também não chamei um táxi por aplicativo. Estou desde o dia onze de março em isolamento total, não saio nem pra. Nem pra. Continuo sentada na mesa da sala, a mesa que temos usado também para comer enquanto assistimos algumas séries mais ou menos. Minha cadeira não tem dado conta da minha coluna, apesar de eu ter gastado tanto dinheiro nessa cadeira que prometia segurar meus ossos equilibrados em formação de ésse.

Durante uma semana inteira, tive que dormir com travesseiros embaixo das pernas e mal conseguia levantar da cama. E eu queria levantar.

Tenho que, porque recebo convites para escrever textos, me convidam para lives, mas noventa e nove vírgula nove por cento das coisas não paga por meu trabalho. As que aceito, digo que sim para as pessoas que me chamam porque tenho uma relação de carinho com elas. Ou aceito porque tenho uma boa relação com aquela empresa e instituição, gosto de trabalhar com aquelas pessoas.

Eu gosto de participar de lives, mas esses “encontros com o escritor” são, na maioria das vezes, muito diferentes dos eventos presenciais. E a diferença não está só no online, está também na plataforma que pega todos os seus dados e rouba sua identidade, como o Zoom. Eu também aceito participar da live pela porcaria do Zoom, pela merda que é o Zoom, porque não aceitam outras sugestões. Na verdade, um dos quatro convites remunerados que recebi, desde onze de março, veio de uma instituição pública. Expliquei que o Zoom pega tudo seu, que a privacidade. Responderam que não precisam temer nada. Queria retrucar, explicar que a questão não é quem não deve não teme. Até quem não deve um dia pode passar a dever porque a dívida só aumenta. Mas era isso mesmo e se eu quisesse aquela remuneração, que aceitasse. Aceitei. Essa é outra das diferenças. Antes da pandemia, eu jamais aceitaria esse convite. Poderia ter uma renda bem menor, mas meu bem-estar estava acima de tudo, principalmente depois de começar a tratar um câncer. Agora meu bem-estar não está acima de quase nada. Eu que me foda. E tem outra diferença entre os eventos de antes e os eventos de agora. É que antes tinha tempo marcado no relógio, agora a maior parte das lives se estende por horas. Enquanto estou falando, rindo e me sentindo grata por estar com aquelas pessoas que gosto, tudo bem. Mas quando acaba, meu bicho me segura pelo pescoço e aperta; já não sou uma pessoa, sou também parte bicho que me sacode.

Para tudo isso, peguei uma câmera empresada. Monto no tripé. Meus gatos querem derrubar, então eles ficam dormindo no quarto, ou miando enquanto eu falo, participando também das conversas. Da última vez, meu cachorro deitou logo atrás de mim e recebi mensagens de que cachorro lindo como ele está passando a pandemia.

Estou trabalhando de graça, muito trabalhando, muito de graça. Exausta. Semana passada atingi um esgotamento mental que desligou certas capacidades do meu cérebro. Eu lia lia lia e não conseguia compreender. Trabalho de edição, parte da mentoria de escrita para mulheres que faço. Estou acompanhando a escrita de três livros completamente diferentes. Na semana passada, não consegui entender o que as autoras escreveram. Mandei uma mensagem pedindo perdão, explicando que minha coluna e ainda mais minha mente. Elas compreenderam, sempre são queridas. Duas delas já conseguiram contratos assinados com editoras diferentes e já estão começando a escrever novos livros. Sinto orgulho do meu trabalho, faço com amor, faço porque acredito em algo que é coletivo. Mas tudo o que elas me pagaram, no início da mentoria em dois mil e dezenove, já não está aqui para a luz, o aluguel, a comida, os animais, os remédios, os imprevistos.

Não queria falar sobre isso. Ficaria duas horas calada enquanto o assunto desliza. Mas rolou um edital, um autor famoso ganhou os dois mil e quinhentos reais de emergência, e minha timeline virou um grande muro de indignação. Logo em seguida o autor se justificou em suas redes. Disse que não tem renda fixa, que não tem trabalho, que se sentiu aflito e por isso se inscreveu. Achei triste que ele precisasse se justificar. Pensei que ainda bem que falo, desde o primeiro dia desse diário, que não tenho dinheiro, não tem remuneração, não sei como vou viver por tantos meses. Não me inscrevi no edital, não recebi dois mil e quinhentos reais. Mas dois mil e quinhentos reais seriam tão importantes pra mim. Porque não sei quanto tempo até.

Como macarrão com salsicha tantas vezes que precisaria começar a registrar se você quisesse saber a frequência. A salsicha é temperada com bastante pimenta, algumas vezes com páprica picante, as rodelas são jogadas na panela que não deixa grudar nem lembrança boa. Já bebi chá para economizar refeição. Eu amo chá, é minha bebida favorita, todos os tipos. Também gosto de salsicha, mas não comia há alguns anos. Eu era bem mais saudável antes de onze de março. Engordei não porque tento entupir o vazamento da angústia com comida, mas porque é tudo carboidrato farinha enlatado conservante congelado e o que for mais barato. Uma vez li uma pesquisa americana que dizia que a população negra dos EUA tem mais obesidade, problemas de hipertensão, diabetes e outras doenças porque come coisas mais baratas e de menor qualidade. Desculpem por não postar o link, não tenho vontade de procurar. Era uma matéria em inglês, então você pode pegar as palavras-chave, colocar no tradutor e buscar.

Depois que li a justificativa do autor do edital emergencial dois mil e quinhentos reais, pensei que bosta é escrever, gostar disso, ou não gostar, mas só conseguir viver se for desse jeito, porque tenho certeza que só consigo assim, mas quantas vezes vou me banhar na água do eu fiz todas as escolhas erradas? Seria melhor ter ido ver o filme do Pelé. Mas é melhor morrer do que perder a vida. Também estou assistindo Chaves pelo Youtube. Lembro de quando era criança e assistia Chapolin e Chaves enquanto comia cheetos, bolacha recheada e danone de morango. Outra combinação que me lembra a infância é o chá mate quente com pão e manteiga e duas bolachas de chocolate acompanhando. Saudade do cruj cruj cruj tchau. Não queria ser criança de novo, só queria aquele sentimento de não entender direito que tinha um esgoto batendo no umbigo.

E enquanto a cidade levanta os portões e abre as portas, sinto um desejo que me afunda. Vontade primitiva de nunca mais sair. Não acho que vai melhorar ainda em dois mil e vinte. Acho que vai piorar, bicho rasgando a pele e chacoalhando para os lados. Queria estar errada, mas meu corpo tem vontade própria. Já disse, não sou otimista, nunca espero pelo melhor. Tento ficar no presente, mas o presente debocha da minha cara. Eu e mais vinte pessoas estamos em isolamento. Até quando vou ter a possibilidade de fazer lives? E quando os convites voltarem ao presencial, mesmo que nada, mesmo que tudo. Como vou poder aceitar convites de trabalho remunerado se não posso sair? Só saio depois de tomar a vacina? Vou morrer sem nunca mais encontrar as amigas e postar foto do meu prato saudável no instagram. Ou morrer fazendo.

Agora, enquanto escrevo, o bicho isolamento tenta arrancar meu braço. É sempre assim quando tento escrever. Preciso lutar para ter minhas mãos ainda minhas. Tentei escrever esse diário dezenas de vezes, mas não tinha nada para dizer. Não tenho. Escrevo porque gosto de colaborar com tudo que minha editora me propõe. Mas escrevo um monte de merda. Por que vocês ainda me convidam? É só um monte de bosta.

Mesmo que eu quisesse, de que adiantaria repetir as notícias e falar sobre suas consequências? Eu escrevo hoje e sou publicada após dois dias. As notícias do meu diário já estariam ultrapassadas pela escalada bestial de ainda pode piorar. Sempre pode piorar. Piorou hoje, vai ser pior amanhã. Mas de modo geral, na timeline há fogo, crise, ameaça, pânico, piadas com a angústia (disso eu gosto), crime ocorre nada acontece feijoada. Não tem mais panela virando comentário de no meu bairro gritos altos. Nunca mais vi o homem velho do prédio da frente. Meus vizinhos saem tanto que já não vale a pena mencionar. Da última vez em que chegou entrega de mercado e o entregador subiu, o porteiro veio junto. Primeira vez que isso acontece desde que me mudei pra cá. Tem gente que parece que tem vontade mesmo de pegar e passar o beck do vírus. Deve ser coisa do síndico, o mesmo bosta que decidiu uma reforma de elevador durante a pandemia. Quantas vezes já falei sobre isso? E eu vou falar sobre o quê, se não sobre esse quadradinho ridículo?

Meu diário é um monte de parágrafo acumulando esgoto em volta do meu umbigo. Não faço parte de uma iniciativa comunitária importante. Não sei desenhar e transformar a experiência em quadrinhos melancólicos, e bonitos, apesar da realidade. Não sei nem escrever. Vivemos apenas eu, meu bicho e as salsichas.

Queria ser uma escritora que vive de direitos autorais. Mas quantos são? Se nem mesmo o famoso do edital é. Eu mandei uma mensagem pra ele. Queria ser qualquer outra coisa, menos escritora. E não quero ser nada que não seja escritora. Hoje sou bicho rasgando minha pele já não marrom que já foi marrom que é bege pele desbotada; rasgando o discurso que delimita quem sou, como gente, como alguém que faz o que ama.

Mas nada disso é amor.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

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