Diários do isolamento #72: Jarid Arraes

Diários do isolamento

Dia 72

Jarid Arraes

 

 

Entramos em julho. Daqui do buraco com meu nome, fui atingida por muitas lembranças do ano passado. Estava divulgando minha participação na Flip, lançando o Redemoinho em dia quente, publicando um livro de uma das autoras que editei no meu selo, compartilhando imagens dos eventos que teria nas muitas casas literárias em Paraty. Lembrei que dois dos meus livros, um deles o Redemoinho em dia quente, ficou entre os mais vendidos. Um terceiro, As lendas de Dandara, também se saiu muito bem. Se fosse contar todos os livros vendidos, não separando os títulos, apenas com Heroínas negras brasileiras e Redemoinho em dia quente eu teria ficado no quarto lugar de autores mais vendidos. Com a contagem separada, fiquei em entre os quinze.

Isso tudo foi incrível pra mim. Eu lembro de ter sentindo uma conexão muito bonita com as pessoas que estiveram nas casas durante os eventos que participei e lembro da emoção preenchedora quando falei no meu dia “oficial” da programação da Flip.

Um dia antes da minha mesa com a Carmen Maria Machado, nos encontramos num restaurante para conversar com nossa mediadora Adriana Couto. A ideia era organizar um pouco os temas para a mesa. Só que a Carmen chegou sozinha e logo entendemos que nenhum tradutor viria. Apesar do nome tão familiar ao Brasil, Carmen fala inglês. Talvez o pessoal da programação tenha se confundido justamente por isso, pelo nome dela. Mas conversamos muito sobre cachorros, instagram, sobre a sua nova mesa de jantar e sobre o que ela achava do Brasil. Foi um almoço muito feliz. Rimos muito, prometemos nos encontrar em São Paulo para que eu e meu namorado a levassemos, junto com sua esposa, a algum bar LGBT.

Lembro que eu estava usando alongamento de cílios e que não podia coçar o olho com a agonia que é característica das coceiras. Lembro que o chuveiro da pousada era elétrico, extremamente quente ou muito frio, e eu morro de medo de levar choque durante o banho. Lembro de todos os detalhes, todos os restaurantes em que comi e bebi vinho branco ou suco de laranja. Lembro de muito afeto e da vida sendo vida.

Diferente de agora, que a vida é outra coisa.

Agora a vida é algo que preciso e não quero. Passa como a televisão ligada ao fundo, só pra disfarçar o sentimento de solidão. Passa como açudes nas estradas do Cariri; aquela imagem bonita de vida saindo da vista ligeiro demais. O pescoço se esticando para tentar ver de novo pelo vidro de trás. É uma coisa desejada e insuportável. É o mais vida que já senti em quase trinta anos de existência.

Penso que preciso capturar esse presente, mas, além desse diário, não consigo colocar o presente em palavras. O carro está a quase cem por hora e a moldura da estrada não segura nenhuma história.

As pessoas já estão sem paciência para quem ainda enxerga uma pandemia acontecendo, mais de 60 mil pessoas mortas e mais de 1 milhão de infectados. Elas voltaram a um mundo que ainda não tem desejo de encontro e agora estão cutucando o braço de quem enxerga a rejeição. É pra voltar ao normal, você não viu? Só você vai ser a folgada em isolamento? E a gente ainda precisa manter regras de segurança? Mas por que, se já não é obrigado se isolar? E quando foi?

Ontem, aqui no prédio onde moro, enviei e-mails enormes para o síndico e a administradora do condomínio. Tive que repetir que não terminei o tratamento contra câncer e que não posso me colocar em risco de morte só porque o síndico é um irresponsável e, desde que a pandemia começou, nem sequer disponibilizou máscaras para os funcionários da portaria. Coloquei pra jogo até uma vez, há alguns meses, em que uma amiga veio me visitar e foi orientada a usar o elevador “de serviço”. Escrevi: preciso dizer que ela é negra?

Essa solidão do isolamento é um constante impulso para que você chegue perto demais da ribanceira. Bem na pontinha. Dá uma tontura, uma gastura. Será que você consegue não balançar o corpo? Será que não é melhor cair logo? Deixar que o controle vire um grito que fica cada vez mais distante. Lá longe alguém despencou, se estabacou todo. Quem sabe você vá em seguida. Tem mais alguém sentindo medo? Mais alguém que não quer sair, mesmo querendo sair? Tem alguém aí?

Depois de meses tentando um acordo com uma editora para que pagasse meus direitos autorais de anos, as coisas da minha vida estão começando a acontecer. Uma nova edição do Heroínas negras brasileiras com contrato assinado. O selo que continua sendo meu e que vai publicar uma antologia de poetas negras brasileiras. A mentoria de escrita para mulheres que já terminou sua primeira fase com dois livros publicados e outros dois a caminho. Um diário que escrevo semanalmente, apesar de sempre achar que esgotei todas as palavras possíveis. O novo jogo que me faz companhia todas as noites, antes de dormir, e que é uma Visual Novel. Porque quando não estou lendo, estou lendo. É uma Visual Novel chamada Death Mark e é de terror, mas não me dá nenhum susto. Já vou no terceiro capítulo e recomendo. Tem uma trilha sonora bonita, quando aparece alguma música, mas é muito mais cheia de silêncio e sons de passos, árvores, portas.

Eu gosto muito do silêncio, mas só experimentei um silêncio que me pareceu de verdade quando tive a sorte de visitar Ushuaia. Essa cidade já no fim do nosso continente, na Patagônia, chamada de última cidade do mundo, foi o cenário do meu primeiro encontro com a neve e de um dos momentos mais lindos da minha vida, quando sentei pertinho do lago onde fica a fronteira da Argentina com o Chile e não escutei nenhum som, nem de bicho. Foi o maior silêncio que já conheci. E eu lembro de ter desejado morar em Ushuaia, escrever de vez em quando naquele lugar, sentir o corpo feliz porque estava tão frio. Eu nem usei roupa adequada pra neve ou pra temperaturas como aquelas. Eu amo tempo frio e agora que moro em São Paulo, os vinte e três graus do Cariri, enquanto chove, são quentes demais.

Nesse presente da pandemia, está frio. Finalmente. Todos os anos espero pelo inverno de São Paulo. É quando mais gosto de sair para encontrar as amigas. Gosto de sentar numa mesa de bar do lado de fora. O vento vindo com tudo. O parque é mais agradável, a rotina é melhor, os gatos querem ficar perto o tempo inteiro.

Mas é frio em São Paulo e não posso sair. Vou viver o inverno pelas janelas abertas. E estou permitindo que as lembranças morem na minha consciência. A vez em que comi banana split num boteco, o carangueijo gigante de Ushuaia que tive pena de comer, a matilha de cães que corria pelas ruas do centro da cidade, o inverno em Buenos Aires e a plaquinha de Bienvenidos que compramos numa feira de rua. O inverno na França, quando fui lançar meu livro traduzido para o francês. Quando me perdi nas ruas de Paris e, sem querer, fui parar na Catedral de Notre Dame. E dei uma choradinha pensando na animação da Disney.

Em todos esses dias, aconteceram coisas desconfortáveis ou até ruins, mas agora só penso nas memórias que transformo em totalmente boas. Estou vivendo de memórias, pequenas manchas de cores, o cheiro de figo com queijo, o taxista falando espanhol rápido demais, o taxista falando português devagar demais, o taxista não falando francês porque eu não entenderia mesmo.

Que péssimo estágio do isolamento é esse que estou vivendo. Os primeiros meses passaram, um novo trimestre começa se formar, e tudo está ainda pior. Ainda bem que não tive esperança, ainda bem que não achei que o Brasil faria a coisa certa. Aqui está o motivo porque espero pelo pior e corro da esperança. É o que é. Amanhã vem aí.

Tenho certeza de que amanhã vou lembrar da minha primeira vez dentro de um avião.

 

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Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.