Diários do isolamento #78: Jarid Arraes

20/07/2020

Diários do isolamento

Dia 78

Jarid Arraes*

 

#BrasiPedeSocorro, Não mantenha distância, Estátua de ativista negra que substituiu monumento derrubado é removida. É feio, mas não é tão cruel. #AprovaAuxilioEstudantil, Ex-procuradores denunciam Bolsonaro por “ilícito” na Covid-19. Os danos cerebrais causados pela Covid-19, No “New York Times, Felipe Neto chama Bolsonaro de “pior presidente no combate à Covid-19”, How to protect yourself and others from Covid-19.

Hoje tive três pesadelos seguidos. Um me fez acordar em pânico. Os outros dois apenas vieram, abri os olhos, fechei os olhos, voltei a dormir. Há uma semana não consigo ficar mais de meia hora sentada trabalhando. Deito na cama com um travesseiro aguentando minhas pernas e jogo videogame. O último que terminei foi “Layers of Fear”, um jogo de terror sobre um pintor perturbado e sua esposa pianista. Vários sustos e “fi duma égua” em seguida.

É falso que autoridades foram processadas na França por veto à cloroquina, explicam agências. Parques da Disney reabrem em meio a alta de casos de Covid-19, Mortes por Covid-19: leia comparação entre Brasil e outros catorze países, #CiteUmTristeFato, Palestina, ANYONE ELSE OUT NOW, Maternidade ou carreira?, O jovem bailarino nigeriano que encantou as redes sociais, Impasse jurídico trava investigações sobre PMs que matam em São Paulo.

Hoje fui até o incenso aceso e gostei da fumaça que entrou pelo meu nariz e quase me fez tossir. Pensei no homem do prédio da frente que, no começo do suposto isolamento, foi até a janela e cantou alto, esperando que um coro de música se formasse a partir do seu chamado. Pensou que aqui fosse a Itália. Ninguém cantou junto. Não teve ninguém nas janelas e varandas, em nenhum dia até hoje, que tenha juntado a voz com a voz de outra pessoa e mais outra para que uma música trouxesse a sensação de junteza e luta.

Essa pizza não chegou conforme o esperado e a galera não consegue parar de rir, Pela sexta semana consecutiva, o álbum #Chromatica de Lady Gaga é #1 na Billboard Dance/Eletronic Albums, SP pode ter 600 mil casos e 26 mil mortes por Covid-19 até final de julho.

Hoje suportei a dor. Vou suportar o peso da raiva. O peso de me sentir negligenciada pela sociedade. Cada pessoa que sai, alonga meu tempo isolada. Eu não tenho coragem de sair. Há muitas semanas deixou de ser muito mais sobre fazer parte de algo coletivo pelo bem comum. Agora é medo, medo, medo. Escrevo isso e tenho vontade de chorar. Aguentei muitas semanas sem chorar. Não lembro quando foi a primeira, nem se teve mais de uma, mas agora, enquanto escrevo, sinto o desamparo o desespero a raiva a decepção o medo a revolta tudo subindo até o nariz, subindo até os olhos. Respiro, faço descer. A morada é o estômago. Hoje comi o que não devia. Já não como pizza congelada e nuggets. Mas não tem pacote de bolacha recheada de chocolate que dure.

Ao lado da minha mesa, tem uma bandeja com todas as bebidas alcoólicas da casa que não são os vinhos. Tem pisco, saquê, licor, gin, cachaça e até absinto. Comprei esse absinto pela internet, ele tem 89,9% de álcool. Para beber, você derrama o absinto sobre um cubo de açúcar, depois taca fogo no cubo até caramelizar e derreter, depois mistura o açúcar com o absinto, depois mistura tudo com água gelada. Tem gosto de chá.

Estou planejando beber alguma dessas coisas há duas semanas. Mas ficar bêbada em casa, durante o meu isolamento, me parece tão deprimente. Talvez se eu colocar #Chromatica para tocar bem alto, talvez se eu comprar aquelas luzes que ficam dançando, talvez se eu apenas aceitar que tudo é deprimente. Postar #tbt, lembrar dos brunchs com as amigas, olhar as fotos da minha participação na Flip ano passado.

Minhas amigas mandaram um brunch surpresa para mim. Uma cesta toda enfeitada com glitter rosa e um coração com “Chromatica at heart” escrito. Acordei com a surpresa e me senti igual quando era criança e comia sopa de letrinhas depois de cochilar pela tarde. Foi o mais alegre que me senti durante esses quatro meses. São quatro meses, né? A gente sente saudade do brunch periódico, dos encontros do Clube da Escrita para Mulheres, das selfies com a cara bem juntinha. Mas quando penso nisso, na espera, na ausência, eu só sinto medo. Eu queria, mas tenho medo. Eu sei que tem um monte de gente nos bares. Como eu queria, mas o medo canta alto. E eu só sinto medo porque essas pessoas estão piorando tudo para todo mundo.

Mundo perdeu a paciência com o Brasil, afirma acionista da Klabin. “Queremos respostas”: os parentes das vítimas da Covid-19 na Itália que foram à Justiça contra autoridades. Saiba tudo sobre festas virtuais com peladões e shows de strip em lives, Contágio de Covid ainda acelera em 60% das cidades brasileiras, Covid-19: Niterói é escolhida pela Fiocruz para testar vacina, Macarrão com chocolate: você comeria?, Vem aí Ifé, primeiro filme lésbico da Nigéria, Convite — teste de ancestralidade, Covid-19 e “imunidade de rebanho”: o que significa e o que dizem especialistas.

Meu cachorro está sujo, mas ainda quer contato físico. Enfia o focinho por baixo do meu braço, enquanto digito, e me comovo. Os gatos brincam pesado com ele. Mordem, puxam a pele com as unhas, enfiam a cara dentro da orelha dele. Ele não faz nada além de abanar o rabo pela ansiedade, pela expectativa. É muito manso, dócil, trouxa. Só não é perfeito porque bate nas portas das varandas pedindo para sair. Bate bate bate bate com as unhas, as vezes bate bate bate bate de um jeito que parece um murro e o vidro faz um barulho grave.

Ele só quer sentir o vento frio do inverno que não vou viver. Ele só quer ficar em pé, encostando no parapeito, e olhar o movimento da rua.

Ele não sabe o que é coronavírus, o que torna ainda mais deprimente o fato de que há meses não vai ao parque. Me pergunto se ele pensa que, de repente, nos tornamos donos ruins.

Olho o movimento do mundo pelo Twitter. É só mais um dia com a sopa de letrinha das notícias e piadas. Minha vida não é interessante o suficiente para um diário. Tenho preguiça de preparar o absinto. Vai sair um cordel inédito na minha coluna aqui no blog da Companhia, um cordel baseado em Sartre. Eu sempre releio O ser e o nada. Não sei qual livro ler em seguida. Escrevi a orelha de um livro importantíssimo. Estou pensando em aprender a tocar piano sozinha.  Tenho que escrever uma história de ficção dividida em oito capítulos. Não tenho nenhuma ideia. Não tenho um jeito legal para terminar esse diário. Acabei de acrescentar ao pedido do mercado dois pacotes de biscoito wafer, uma bandeja de chambinho e uma garrafa de Pinot Grigio.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

 

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