Diários do isolamento #83: Jarid Arraes

03/08/2020

Diários do isolamento

Dia 83

Jarid Arraes*

 

Decidi que não vou mais esperar por vacina, por números baixando, por responsabilidades políticas, por amigos conscientes. Decidi que domingo vou fazer exame de sangue, que vou encontrar minha médica, que vou marcar a radioterapia, que vou terminar isso de uma vez, de modo terminante, exterminável, temido e em tremor.

Ontem deitei no escuro, uma única linha de luz segurando o quarto que me pendurava. Deitei e ouvi o novo álbum do Bob Dylan. Deitei e chorei ouvindo Black Rider.

Black rider, black rider.

Difícil ouvir a letra de uma música e me identificar assim de forma veiuda. Todos os vasos sanguíneos respondendo. A dobra do braço com um ponto bem verde. A pressão sentida por qualquer toque leve. Sangue puro, desses que foge. Black rider entrando pela melhor veia de minha mão esquerda.

Não por menos esse homem ganhou um Nobel de Literatura. Se você achou isso ruim, que pena. Eu achei ótimo.

Ontem joguei Gone Home, um jogo com uma proposta de suspense em que a irmã mais velha chega na mansão recém abandonada da família e tem que descobrir o que aconteceu com a irmã mais nova e os pais. Tudo revirado, canetas e canecas por toda parte. E eu gosto de jogar esse tipo de jogo, esse tipo que você precisa analisar os objetos para ir montando as “pistas” (ou melhor, as histórias), com a religiosidade do toque. Pego em tudo, viro tudo, analiso tudo, penso que tudo pode ser importante, mesmo que eu tenha virado canecas brancas, copos de vidro e canetas centenas de vezes.

Canecas, copos, canetas.

Ontem eu aceitei a desilusão.

É que não tem dia de início, não adianta esperar pela data em que tudo vai melhorar. Ontem eu disse no twitter que detesto quando as pessoas tentam amenizar a queda falando que há uma almofada que, na verdade, não existe. Eu disse que é melhor aceitar a queda. É melhor aceitar. E hoje acordei compreendendo que não comecei ainda a escrever um romance porque quero fingir que não tenho escolha. Mas escolho todos os dias, tenho muitas opções de escolha. Acho que já falei sobre Sartre por aqui. E é isso, como digo no cordel que publiquei aqui no blog da Companhia, a condenação de ser livre é um peso que temos que suportar. E imagina se eu queria olhar para o peso de uma verdade imutável, se a mentira nem sequer escala meus ombros.

Hoje eu tomei banho ouvindo Britney Spears. Depois assisti a um vídeo que mostra como a voz dela foi prejudicada pela indústria. Soube que a Lady Gaga foi indicada em nove categorias do VMA. Bebi um copo de Coca ainda subindo bolhinhas. Lembrei do meu colar com uma única pérola que esqueci no banheiro de um hotel. Pensei nas amigas que perdi e que me perderam. Pensei na escolha de falar. Cada palavra como as bolhas descontroladas dentro de um copo, subindo, descendo em gás, estragando o sistema digestivo, criando úlceras, as palavras. Se você já escolheu palavras e depois disse que é responsabilidade do seu estado emocional, que pena. A responsabilidade é sua.

Hoje eu queria chorar ouvindo Black Rider.

Hoje eu queria o escuro que me carrega no colo.

Eu, a verdade pesada.

Agosto começando.

Desde 11 de março.

Hoje eu queria Bob Dylan, Britney Spears.

Eu queria que fosse ontem e, sabendo ser passado, queria escolher outras palavras.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

 

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