Diários do isolamento #85: Jessé Andarilho
Diários do isolamento
Dia 85
Jessé Andarilho
É com muita tristeza no coração que escrevo esse texto para dividir com vocês uma parada horrível que aconteceu comigo esses dias.
Quem acompanha o nosso Diário do Isolamento sabe que estou abrindo uma biblioteca comunitária na favela onde eu nasci.
Então. Sexta-feira passada alguns moradores de Antares vizinhos da nossa biblioteca vieram até mim para falar sobre uma notícia que eles ouviram na rádio BandNews FM que dizia que o espaço onde funciona nosso projeto era a base de monitoramento da milícia.
Não sei o que essas pessoas que se dizem jornalistas têm na cabeça para publicar uma matéria sem averiguar e checar as fontes.
Agora eu que nunca me envolvi com parada errada, que tinha um moral e prestígio na favela, me tornei um cara suspeito entre alguns moradores que acompanharam de longe a atuação da polícia civil que foi investigar a denúncia e chegou daquele jeito que todo mundo sabe como é quando eles entram nas favelas.
Nem vou contar que mandaram as crianças deitar no chão e que fiquei com um fuzil apontado pra minha cara.
Também não vou contar que eles fecharam a rua da biblioteca e revistaram todos os moradores que passaram na frente do espaço.
Não vou contar que pensei em desistir de tudo e sumir no mapa, o que posso contar é que tive vários pesadelos, mas acordei e voltei a sonhar com um país de leitores em que o LIVRO ARBÍTRIO seja uma ferramenta de transformação para o meu povo.
Depois de tudo isso ainda recebi uma ligação da produção da rádio BandNews dizendo que eles confiam totalmente na fonte deles e que não sei o que lá mais, porque nem quis ouvir mais nada e desliguei o telefone.
Como pobre e favelado não tem direito de resposta, o pessoal da Band só retirou a matéria do site, mas não retirou as informações dos ouvidos dos ouvintes que ainda estão com a informação falsa em suas cabeças.
Eu não ia dividir isso com ninguém, mas como estou escrevendo em meu diário, me senti confortável pra passar essa informação.
Ontem um garotinho me disse que a mãe dele não quer mais saber de livros na casa dela. Nem sei o que dizer para essa mãe. Alguém tem alguma ideia?
***
Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.
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