Diários do isolamento #9: Elvira Lobato

 

Diários do isolamento

Dia 9: Desobediência senil

Elvira Lobato

 

Minha segunda semana de confinamento foi um tobogã de sentimentos contraditórios, a ponto de não conseguir chegar a uma definição sobre o meu estado de espírito. Meu humor está oscilante. Ora me escangalho de rir com vídeos que recebo pelo WhatsApp  — e quanto mais bobos, mais engraçados me parecem —, ora me estarreço, ou me deprimo com o aumento exponencial de vítimas fatais na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos. Se eles estão com dificuldades até para enterrar seus mortos, o que vai ser de nós quando atingirmos a tão temida curva de crescimento do vírus?

Os telejornais nos bombardeiam com informações sobre o dinheiro liberado pelos governos dos países ricos para evitar o colapso total de suas economias. Falam-se em trilhões de dólares; bilhões de euros. São cifras tão colossais que nem me abalam. Não consigo dimensionar o que representem em nossa moeda e me parecem tão fantasiosas quanto os “quaquilhões” do Tio Patinhas.

Queria ter uma boa história para contar. Algo que fizesse o leitor sentir um fio de esperança, ainda que passageiro. Mas só me chegam desgraças. Como manter algum otimismo se o comandante do navio está mais preocupado em desacreditar os governadores que adotam a política de isolamento social recomendada pela Organização Mundial de Saúde do que em evitar mortes? O jornalista Otávio Guedes, comentarista da Globonews, em momento inspirado, rotulou o presidente de “Napoleão de hospício”.

O confinamento prolongado está não apenas solapando meu humor, como também começo a perder a noção do tempo. Não me perguntem que dia é hoje, porque terei de confirmar a data impressa na primeira página do jornal. Já não tenho certeza sequer sobre o dia da semana, porque são todos iguais. Me sinto uma personagem daquele filme norte-americano O feitiço do tempo, em que os moradores de uma pequena cidade vivem a mesma história todos os dias.

Tenho sorte de ter um companheiro na clausura. Muitas amigas minhas estão reclusas sozinhas. Me apavora a ideia de ficar presa numa solitária, e o confinamento a sós é uma prisão solitária, ainda que possa ser espaçosa. Preciso compartilhar minhas impressões e opinar sobre tudo o que vejo.

Suspeito que meus vizinhos estejam em momento parecido, porque os panelaços praticamente desapareceram no meu entorno, como se estivéssemos momentaneamente paralisados pelo medo da morte e do caos econômico. No começo ouviam-se baticuns nas janelas todas as noites. De uns dias para cá, ouço apenas alguns xingamentos contra Bolsonaro, vindos de apartamentos do meu prédio e dos edifícios vizinhos. Mas são gritos sem retorno e sem reações. Guardei minha panela de alumínio e a colher de pau que usei no panelaço do dia 18 de março.

Paradoxalmente, os dias estão lindos no Rio de Janeiro. Com a redução da quantidade de carros nas ruas, o ar ficou mais puro. Sem o barulho dos motores dos automóveis, ouço melhor os pássaros e já estou interessada em aprender a distinguir as espécies pelo canto. Observo que até as noites estão mais estreladas. O antúrio vermelho e os primeiros botões da flor de maio desabrocham na minha varanda.

Confesso que rompi a ordem de confinamento algumas vezes para caminhar. Há dezessete anos tenho uma rotina de natação e de exercícios físicos e estou sofrendo uma crise de abstinência. Acordo às 5h porque meu corpo se acostumou a nadar às 6h. Não consigo dormir até mais tarde. Alguns dias acordo angustiada e preciso caminhar para gastar energia e receber a dose de endorfina a que estou acostumada. Saio assim que o dia amanhece. Caminho rápido, sem tocar em nada, nem falar com ninguém. A administração do meu prédio colocou uma caixa de lenços de papel no elevador para as pessoas se protegerem ao apertar o botão. Levo lenços de papel e álcool gel, e desinfeto as mãos sempre que toco em algo. Mesmo assim, volto para casa com culpa. Há dois dias, “estou limpa”, ou seja, não botei o nariz fora de casa, e espero continuar assim. Mas, os adictos sabem que é preciso viver um dia de cada vez para dominar o vício.

A maioria dos caminhantes que encontro no amanhecer é de pessoas que aparentam ter mais de sessenta anos. Ou seja, são como eu. Por que será que os idosos estão mais rebeldes? Uma empresa de inteligência artificial chamada Cyberlabs monitorou a circulação de pessoas nas vias públicas de sete bairros do Rio de Janeiro entre os dias 23 e 26 de março e constatou que havia mais gente nas ruas em Copacabana (de conhecida concentração de idosos) do que nos demais bairros. A pesquisa não aferiu o motivo da desobediência senil, mas eu dou uma pista: vontade de aproveitar a vida que nos resta.

 

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Elvira Lobato é jornalista e trabalhou na Folha de S.Paulo por 27 anos. Venceu alguns dos principais prêmios de jornalismo no Brasil, com destaque para o Prêmio Esso em 2008 pela reportagem sobre o crescimento do patrimônio da Igreja Universal. Antes da Folha, trabalhou para o Diário de NotíciasGazeta de NotíciasÚltima Hora, e foi colaboradora do Jornal do Brasil e do Opinião. Elvira é autora de Instinto de repórter, publicado em 2005. Em 2016, foi homenageada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) pelo conjunto de seu trabalho jornalístico. Em 2017, publicou Antenas da floresta: a saga das tvs da Amazônia pela editora Objetiva.