Editando "Grande sertão: veredas": o Acervo Guimarães Rosa no IEB-USP

25/01/2019

 

Desta vez, expandimos a leitura do clássico Grande sertão: veredas em um texto de Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos e Elisabete Marin Ribas, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Sandra e Elisabete são responsáveis pelo Acervo de João Guimarães Rosa que fica no IEB e colaboraram com a nossa pesquisa para a edição. Aqui, as duas escrevem sobre o conteúdo do acervo e as pesquisas realizadas pelo escritor. Leia abaixo.

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O Acervo João Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, é constituído pela biblioteca do escritor, composta de aproximadamente 3.000 volumes, e por um conjunto muito rico, variado e importante de documentos que dizem respeito tanto à vida pessoal quanto à carreira literária e diplomática do autor de Grande sertão: veredas. Ainda que a biblioteca não represente a totalidade dos livros que Guimarães Rosa possuiu em vida, pois a carreira diplomática, obrigando-o a inúmeras mudanças de país, levou-o a deixar muitos deles para trás, ela contém um número expressivo de obras — todas as que se encontravam em seu poder por ocasião de sua morte — e faculta uma noção muito clara sobre a variada gama de interesses do escritor, permitindo ao estudioso acompanhar parte de suas leituras e formação.

Mas é, sobretudo, a coleção de mais de 9 mil documentos que nos possibilita um exame da trajetória pessoal e literária do escritor, pois reúne uma enorme diversidade de materiais, que incluem desde documentos pessoais, fotografias e correspondência do escritor, assim como originais em diferentes fases de elaboração, manuscritos, cadernos, cadernetas e pastas contendo estudos para a obra, recortes de jornal e impressos avulsos. Se as diferentes facetas da vida de Guimarães Rosa — o médico, o diplomata, o escritor — se revelam por meio dessa documentação, o que salta aos olhos é o trabalho paciente e artesanal empreendido por um homem que foi, acima de tudo, um grande leitor e um excepcional pesquisador, ele mesmo assumindo muitas vezes quase um papel de etnógrafo, a esquadrinhar diferentes aspectos da formação do Brasil, do homem brasileiro, de sua história e cultura.

Suas pastas, volumes e cadernos tratam de uma variedade surpreendente de assuntos — zoologia, heráldica, religião, xadrez, costumes, roupas, culinária, filosofia, pintura, literatura, cultura popular —, oferecendo uma prova cabal do ânimo investigativo e curioso do escritor, demonstrado na impressionante massa documental que lhe serviu de alicerce e material. Ali, se o pesquisador da língua aparece nos incontáveis estudos de vocabulário e expressões, o estudioso da cultura, tanto erudita quanto popular, também se faz presente.

Depois de deixar Cordisburgo em 1918 para estudar em Belo Horizonte, Guimarães Rosa, à sua maneira, fez uma viagem etnográfica ao sertão de Minas. Seja como médico, na década de 30, ou já diplomata, em dezembro de 1945 e maio de 1952, Rosa retomou contato com os costumes, falas, histórias, cantos e danças dos homens do sertão, reencontrando-se, assim, com o mundo de onde saíra muitos anos antes. Na viagem de 1952, durante dez dias montado em lombo de cavalo, caderneta presa ao pescoço, Rosa anotou com sua letra miúda observações sobre a fauna, flora, costumes e falas, bem como sobre a cultura sertaneja, deixando entrever ainda seu gosto indisfarçado por bois e vaqueiros, que se manifesta nesses registros e anotações de suas andanças por Minas Gerais.

Desde Cordisburgo, cidade situada entre Curvelo e Sete Lagoas, na zona de fazendas de criação e engorda de gado, Rosa conviveu intensamente, mesmo que durante largo tempo apenas no plano da memória, com o universo daquilo que ele mesmo referiu como “pé-duro, chapéu-de-couro”. Tudo isso e muito mais ficou registrado em diários de viagem, cadernos, pastas, que, apesar de constituírem um conjunto de anotações fragmentárias, permitem recompor seu trajeto. Em larga medida, um itinerário que revela algumas intersecções com os caminhos trilhados pelos jagunços de Grande sertão: veredas em sua demanda pelos campos gerais e que se configura como uma espécie de mapeamento da paisagem do romance e dos contos de Rosa.

Da mesma forma que registrou a memória desse tempo e desse espaço, o escritor mergulhou igualmente no universo da cultura letrada. Como diplomata, correu mundo — Rio de Janeiro, Paris, Bogotá, Hamburgo —, armazenando ainda o “saber das terras distantes”. Esse “homem do sertão”, “meio vaqueiro”, como ele se definiu em entrevista a Gunther Lorenz, foi também o sofisticado leitor de uma gama extensa de assuntos, como apontamos acima e conforme atestam as inúmeras pastas de Estudos do escritor depositadas no IEB-USP.

A mistura programática desses saberes faz da obra de Rosa um lugar permanente de negociação entre a modernidade urbana e a cultura tradicional-oral das comunidades rurais, ou de articulação entre o espírito de vanguarda e o interesse no regional, o que, superando dualismos e dicotomias, resulta numa mescla de formas cultas e populares, arcaísmos e neologismos e regionalismos e estrangeirismos. Guimarães Rosa é autor de uma obra que se configura como um espaço de tensões entre rural e urbano, entre arcaico e moderno, entre oral e escrito, atuando como um mediador entre duas ordens diversas de experiência — papel esse facultado pela situação muito particular de ele ter sido simultaneamente um homem do sertão e um cidadão do mundo.

O Arquivo documenta todo esse processo de formação do homem e do escritor, permitindo-nos acompanhar de perto o trabalho paciente e lento de coleta e armazenamento de documentação que Guimarães Rosa levou a cabo e que se concretiza na enorme massa documental reunida nas diferentes séries. Nela, é possível testemunhar o gesto deliberado e consciente de um autor que procurou municiar-se de dados de toda ordem para compor seu universo ficcional.

Guimarães Rosa coleciona citações, fotos, desenhos, listas de palavras, recortes de jornal — registros de um trabalho artesanal acumulado nos cadernos e pastas como fragmentos do real prontos a se articularem em novas constelações de significados. Percorrer seu Arquivo é deparar-se a todo instante com essa vasta coleção de fragmentos oriundos de tempos e tradições diversos, prontos para saírem de seu estado virtual e construírem novos feixes de significação.

Muito provavelmente, é desnecessário pontuar a importância desse tipo de documentação para o pesquisador ou estudioso de qualquer autor. Mais ainda quando esse escritor é alguém do porte e do significado de Guimarães Rosa que, juntamente com Machado de Assis, Mário de Andrade e Graciliano Ramos, ocupa os patamares mais altos de realização no terreno da ficção brasileira.

O Acervo dá margem a uma infinidade de trabalhos de pesquisa, possibilitando revelar aspectos ainda desconhecidos do processo de formação do homem e do escritor. Muitos estudos já foram realizados graças a esse material, tendo resultado na publicação de diversos livros sobre a obra de Guimarães Rosa. Há, entretanto, incontáveis outras possibilidades de aproveitamento dessa documentação. Por exemplo, a organização de uma biografia do autor; a publicação de sua correspondência com os diversos tradutores, com informações preciosas e reveladoras sobre a obra; a organização de sua fortuna crítica em jornal, material de grande utilidade para o acompanhamento da recepção de sua obra na primeira hora.

Uma breve descrição dos documentos facilita uma percepção das potencialidades do Arquivo para a pesquisa, de sua relevância e do enorme privilégio que é, para qualquer estudioso da obra de Guimarães Rosa, poder ter acesso a esse material. Toda a documentação está organizada em grupos, que compreendem os seguintes campos:

  • Atividades Profissionais (231 documentos)
  • Correspondência (2044 documentos)
  • Documentação Póstuma (623 documentos)
  • Formação (5 documentos)
  • Identidade Civil (9 documentos)
  • Literatura (3987 documentos)
  • Relações Sociais (78 documentos)
  • Universo de Interesses (2426 documentos)
  • Vida Doméstica e Familiar (211 documentos)

 

O Instituto de Estudos Brasileiros tem a responsabilidade não só de organizar e conservar esse acervo, mas sobretudo de garantir seu caráter público, proporcionando os meios de facultar aos pesquisadores acesso a esse material e fazendo dele um espaço de preservação da memória desse escritor.

Quer conhecer o IEB e fazer sua pesquisa conosco? Em nosso site temos os contatos de todas as áreas que compõem o Instituto: www.ieb.usp.br Para acessar o Arquivo, pedimos que agende sua vinda, por meio do e-mail arquivoieb@usp.br.

Para conhecer a Biblioteca do IEB, o contato prévio deve ser feito pelo e-mail bibieb@usp.br.

 

Profa. Dra. Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos

Curadora do Acervo João Guimarães Rosa — IEB-USP

Elisabete Marin Ribas

Arquivo IEB-USP

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Leia a sinopse da edição

Publicado originalmente em 1956, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, revolucionou o cânone brasileiro e segue despertando o interesse de renovadas gerações de leitores. Ao atribuir ao sertão mineiro sua dimensão universal, a obra é um mergulho profundo na alma humana, capaz de retratar o amor, o sofrimento, a força, a violência e a alegria.
Esta nova edição conta com novo estabelecimento de texto, cronologia ilustrada, indicações de leituras e célebres textos publicados sobre o romance, incluindo um breve recorte da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino e escritos de Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Benedito Nunes, Davi Arrigucci Jr. e Silviano Santiago. Dispostos cronologicamente, os ensaios procuram dar a ver, ao menos em parte, como se constituiu essa trama de leituras.
A capa do volume é reprodução da adaptação em bordado do avesso do Manto da apresentação, do artista Arthur Bispo do Rosário, com nomes dos personagens de Grande sertão: veredas. O projeto gráfico conta ainda com desenhos originais de Poty Lazzarotto, que ilustrou as primeiras edições do livro.

 

www.companhiadasletras.com.br/gsv

 

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