Em busca de Sérgio Sant’Anna

Marcílio França Castro

 

Alguns quilômetros ao norte da lagoa da Pampulha fica Venda Nova, um bairro de casas modestas e comércio intenso na periferia de Belo Horizonte. A região é populosa e tem vida própria; de vez em quando tenta se emancipar. A rua principal, com nome de padre, corta praticamente todo o bairro. Surgiu de um caminho de tropeiros do século 18, uma rota que vinha da Bahia. Hoje o local está urbanizado, tem shopping e indústria, mas há quarenta anos era cheio de terrenos baldios e ruas de terra. Foi nesse bairro que Sérgio Sant’Anna morou com Letícia, sua segunda esposa, em meados da década de setenta.

Sérgio Sant’Anna era carioca, mas viveu mais de 15 anos em Belo Horizonte, contando o intervalo para uma residência literária em Iowa, nos Estados Unidos. Fez  movimento inverso ao de seus colegas, que no decorrer do século 20 migravam em ondas para São Paulo e Rio. Na capital mineira, Sérgio formou-se em Direito, publicou os primeiros contos. Trabalhou em tribunal, deu aulas de comunicação na Universidade Católica. Durante algum tempo frequentou o Suplemento Literário, periódico que o ajudou a exercitar a literatura. Vários de seus contos mais recentes, dos anos 2010, remetem a essa época e funcionam como uma espécie de painel biográfico do escritor em Minas – de 1959 a 1977.

Durante quase todo o seu tempo de Belo Horizonte, Sérgio morou na zona sul, entre os bairros São Pedro e Santo Antônio, a Savassi e o centro – cujos bares frequentava. Foi só em 1975, já pai de dois filhos e então separado da primeira mulher, que se viu na contingência de abandonar a parte nobre da cidade. Buscava um aluguel barato para viver com a nova namorada – assim foi parar em Venda Nova. A casa era modesta, com quintal e uma pequena varanda. Na frente cimentada, dava para guardar o carro. A rua, uma ladeira de terra batida, desembocava abaixo no asfalto. A água precisava ser bombeada da cisterna. A mesma descrição serve para a casa dos protagonistas de “Eles dois”, conto que seria publicado em 2014, no livro O homem-mulher. Na história, o narrador se confunde com o autor. Memória e ficção fazem parte do mesmo tecido.

Sérgio e Letícia gostam de tirar fotos, tal como os personagens do conto. Tiram muitas fotos um do outro. À noite, bebem uísque, fumam, transam. Cultivam mudas de feijão, de abacate, de ameixa. Ouvem radinho de pilha, ligam a tevê sem som. Na prateleira da estante, Letícia monta um altar com a estátua de um diabo. Ele lê Proust, Knut Hansum. Lê os caras que descobrira em Iowa. Voltará a ler Proust, sempre vai ler Proust. Da varanda, veem o céu estrelado, os vaga-lumes. No lote da frente, um matagal faz cair a temperatura. Os dois vivem assim pouco mais de um ano, mas a medida literária e simbólica da convivência parece ter se tornado maior do que a do calendário. Nessa bolha amorosa, meio psicodélica, meio hippie, Venda Nova não é apenas um bairro. É um salto na noite cósmica.

“Flores brancas”, publicado em O conto zero e outras histórias, de 2016, pode ser tomado como uma espécie de complemento do conto anterior. “Eles dois” agora têm nome, chamam-se Célio e Lucrécia, e começam a se desentender. A sombra da ditadura, o ódio latente que toda ditadura espalha, colabora aqui para destruir a harmonia do casal. Enquanto passageiros enfurecidos queimam ônibus, a vida do narrador desmorona. Estamos de novo em Venda Nova, mas desta vez o endereço é explicitamente mencionado. Rua Domingos Grosso, a mesma em que viveram Sérgio e Letícia. Decido fazer uma visita ao lugar.

O acesso agora se dá pelo anel rodoviário, que também conduz a Confins. A rua está toda pavimentada, como de resto as vias próximas. O estacionamento do shopping ocupa um quarteirão inteiro, mas logo acima começam a aparecer as antigas casinhas. No número 410 B-C descubro Fátima, que surge na janela gradeada do segundo andar. Diz ser filha de Milta e Barbosa, de quem Sérgio fora vizinho. Ambos já faleceram. Ela se lembra de Letícia e do escritor – boa praça e brincalhão. A mãe costumava lavar roupa para eles, diz. Fátima aponta a casa onde o casal morou – é a que divide o muro com a sua. Acrescentaram-lhe algo como um terraço, mas a varandinha se mantém como antes, pintada de branco, ligada ao térreo por uma pequena rampa. Uma placa indica o número 410, sem letras. Lendo “Flores brancas”, sou levado a associar Milta, mãe de Fátima, à personagem Myrthes. No conto, o marido de Myrthes também leva o nome de Barbosa.

Para Fátima e os outros moradores, as reformas viárias encurtaram a distância ao centro; o bairro já não é mais “o fim de mundo” a que se refere Evelina, personagem de “Flores Brancas”. Mas o matagal da época de Sérgio sobrevive atrás do muro. Talvez ainda esconda os restos do radinho de pilha que ele atirou ali em um rompante de fúria. Durante alguns minutos, assento-me na calçada e observo a ladeira quieta. Esse despojo de silêncio talvez seja a herança mais resistente de uma época.

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Para ir do centro a Venda Nova é preciso cortar boa parte da cidade, do sul para o norte. Saindo da rodoviária, o normal é pegar a Antônio Carlos. Até a Pampulha são cerca de dez quilômetros. A Antônio Carlos é uma dessas vias em que se vê a cidade pelas entranhas. No caminho, vão mudando as construções, as cores, o céu. Diariamente, há décadas, carrega o tráfego e o sono dos trabalhadores. É uma avenida cansada. Nos tempos de Venda Nova, Sérgio e Letícia faziam sempre esse percurso. Ela tem um fusca, os dois voltam para casa juntos depois do expediente. Ele vem do tribunal, ela do escritório de um clube. Quem dirige é ela. Depois de passar pela barragem, onde os aviões descem raspando, pegam a Pedro I. Ali o trânsito melhora. Há mais áreas abertas, a paisagem é plana. Devagar, as luzes se tornam amarelas e melancólicas. Não fica longe a entrada do bairro. Dobrando à esquerda, ela encosta no primeiro posto de gasolina. Os dois têm o hábito de parar ali, é quase um ritual. No pátio em volta, há um pequeno comércio, uma borracharia, uma barraca de churrasquinhos. Enquanto o frentista enche o tanque, Letícia compra bebida e cigarros. Sérgio fica no carro, observando o movimento. É muito carro despencando, muita carroça. O cheiro dos espetos atrai motoristas e passantes. Desde que se mudou, Sérgio não frequenta mais o Maletta, não voltou ao Saloon. São sete da noite, as luzes do bairro começam a piscar. A fumaça da avenida deixa-o com o estômago enjoado. Atrás do vapor da gasolina, dá para sentir a calma da noite, a desaceleração dos corpos na entrada do bairro. Puxado pela gravidade do nada, o tempo ali passa mais devagar.

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Em 1976 eu era uma criança de nove anos e já havia morado em pelos menos cinco endereços diferentes. Por causa dos aluguéis caros, que meus pais tinham dificuldade de pagar, vivíamos pulando de um lugar a outro, do jeito que dava. Dessa vez o bairro era Venda Nova, ou mais exatamente uma região nos confins de Venda Nova, bem na divisa do município. A casa pertencia aos meus avós; fora construída para ser uma chácara.

Era uma casa bem simples, com dois quartos e sofá de alvenaria, um quintal imenso. A rua não tinha nome, recebia o número 4. Como a de Sérgio Sant’Anna e seus personagens, era também de terra, mais empoeirada do que batida. No fim das casas, onde não havia saída, começava um bosque de eucaliptos, e através dele se chegava a um clube campestre que ficava umas ruas abaixo. Quando nos mudamos, o lugar não tinha rede de água. Era preciso usar o braço na cisterna, até que foi feito um depósito, e dali a água era bombeada para a caixa.

Podíamos ficar um mês inteiro sem contato com o resto do mundo. Ninguém tinha telefone e era preciso andar muito para chegar ao orelhão mais próximo. Acho que ajudei a plantar uns pés de milho, cana e feijão. Vi meu avô, em momento solene, pôr um caroço de manga na terra, e dali sairia uma árvore imensa, tal como o flamboyant, que cresceu de uma muda. Foi a única vez que tive um cachorro, depois morto a tiros por um tio no interior. De vez em quando aparecia uma cobra dentro de casa. Costumava jogar bola na sombra dos eucaliptos, várias vezes furei o pé no arame farpado. Os meninos da pelada eram os que, poucos anos depois, eu veria vendendo amendoim no estádio, enquanto eu assistia ao show. Já dava para perceber o significado de distanciamento social.

Posso dizer que ali a vida acontecia na medida justa. Não havia excesso de nada, nem de roupa, nem de brinquedo, nem de comida. Havia economia e cautela. Não me lembro de violência. À noite, meu pai visitava o vizinho do lado, um cara que trabalhava como porteiro em um edifício no centro, na rua Tupis. Eu às vezes ia junto, ficava ouvindo a conversa dos dois. Na verdade, quase não saía conversa. O luxo era a noite, o breu. Cisterna, telhado, ladrilho. Garoa. Silêncio. Cosmo. O luxo desses bens é tão grande quanto o das palavras que os designam.

Não me restou qualquer fotografia desses anos. Já tive vontade de retornar, rever a casa e a mangueira, mas, seguindo o conselho do meu psicanalista, desisti. Isso arruinaria as minhas lembranças.

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Nesses três anos de Venda Nova, meu pai sempre me levava de carro para a escola. Ele tinha uma variante branca, de duas portas, adquirida de segunda mão. Primeiro um grupo escolar, depois um colégio particular, ambos na zona sul. Tive esse duplo privilégio: frequentar ótima escola, morar em bairro de gente simples. Para cruzar a cidade e alcançar o início da aula, tínhamos que acordar antes das seis. Quase sempre entrava atrasado. Na hora do almoço meu pai me buscava de volta, ou no fim do dia, se eu passasse a tarde na casa da minha avó, a dois quarteirões do grupo. No princípio da manhã era sempre frio, ou gelado, a garoa cobrindo os maracujás e o para-brisas do carro. Um frio legítimo, com legítimas moléculas de frio, hoje praticamente extintas. No trânsito não circulavam tantas motos, contudo os ônibus eram infernais. Como eram muitos quilômetros diários, às vezes faltava dinheiro para a gasolina. Na geografia das minhas memórias, o caminho de Venda Nova, como o dos tropeiros, se liga diretamente à Bahia. Foi de lá que, sem passar pelo centro, nem pela zona sul, saí numa variante branca para ver o mar pela primeira vez – em julho de 1977. Uma peregrinação às avessas, em que a estrada do norte é passagem para o litoral.

Ao voltar da escola, queria sempre que meu pai parasse no posto da entrada do bairro, onde havia a barraca de espetinhos. O retorno era modorrento, os carros se arrastavam na avenida. Ligo o rádio, está tocando “Passaredo”. A melodia fica na minha cabeça. O ritmo é alvoroçado, tem uma beleza que liberta e angustia. Só mais tarde vim a entender o que era obra do Chico Buarque, e então já ouvia todas as faixas de Meus caros amigos. Meu pai dá seta para a esquerda, faz a curva, encosta na área do posto. As luzes das barraquinhas estão acesas, a borracharia tem uma única lâmpada trêmula. Ele desce, pede para eu esperar. Tiro o livro de ciências da mochila, dou uma olhada na lição. Enquanto o frentista enche o tanque, meu pai pede o espetinho, compra um maço de Hollywood. Começa a Voz do Brasil, desligo o rádio. Tenho prova no dia seguinte. Na bomba ao lado, um carro está parado em sentido contrário, emparelhado com o nosso. É um fusca branco, talvez azul. No banco de passageiros, vejo um cara concentrado, lê alguma coisa enquanto aguarda. Ele levanta a cabeça, olha para trás, olha para mim. Inclina-se para fora da janela, nota que tenho um livro no colo. Ficamos nos encarando por alguns segundos, cada um com seu livro. O rosto dele me parece esquisito, sobrancelhas grossas, uns traços de lobo. Baixo a cabeça, retomo a minha lição. Então escuto a porta do fusca se abrindo, o sujeito vem até minha janela, deixa um livro nas minhas mãos.

“Esse é para você ler daqui a uns vinte anos, ele diz”, e entra de volta no fusca.

Fico meio paralisado, sem saber o que fazer com aquilo. É um livro gasto, surrado. Antes que eu perceba, o fusca já arrancou, uma mulher está no volante, acelera.  Na capa do livro, leio “Em busca do tempo perdido”. O autor me é desconhecido. Chegando em casa, meu pai me repreenderá por conversar com um estranho, por aceitar o presente de um estranho. Passados quarenta e cinco anos, é esse o livro que tento encontrar agora na minha estante, em vão.

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

 

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