Em defesa da complexidade, da empatia, da incoerência

12/09/2017

“Quando eu estava na escola de artes”, diz o quadrinista Chris Ware nesse vídeo, “me disseram que eu não podia desenhar mulheres. Se você desenhar uma mulher, está colonizando-a com seus olhos.”

Felizmente, esse foi o tipo de advertência que entrou por um ouvido do então jovem quadrinista e saiu pelo outro. Na obra de Ware, há muitas mulheres (mais do que homens, arrisco dizer): mulheres das mais variadas faixas etárias, profissões, personalidades, crenças, cores, criadas com evidente cuidado e complexidade psicológica. Se Ware não tivesse um profundo compromisso com a empatia, provavelmente ia estar há décadas escrevendo sobre quadrinistas esquisitos que comem pizza quadrada com a esposa e a filha. E eu me pergunto o que teríamos ganhado com isso, nesse movimento bobo de tolhermos a criatividade de alguém em nome de um pretenso purismo de representação. Na verdade, seria um movimento antecipado: a gente supõe que Ware vai desenhar gostosas de biquíni com uma vida interior totalmente vazia, e então o aconselhamos a “por favor não colocar no papel suas ideias erradas sobre mulheres”.

Parece que a revolução cultural chinesa começou assim (brincadeira, mas nem tanto).

Eu não estaria escrevendo sobre alteridade e empatia – de tão óbvio que me parece – se não estivéssemos em um momento tão delicado atualmente.

Na mesma semana em que assisti o vídeo do citado quadrinista, leio que a banda Apanhador Só, que esteve no centro de uma polêmica pouco menos de um mês atrás, costuma modificar as letras de suas músicas quando alguma minoria aponta o dedo e se declara ofendida. Foi o caso de “Líquido Preto”, canção de 2013, que teve os versos “pau no cu de quem não quer / dividir esse refri com a minha mulher” considerados homofóbicos por alguns. Virou “Pau no Cunha”. Na mesma canção, a palavra “gorda” foi substituída nos shows por “gordo”, e depois finalmente por “diabético” (que não cabe na métrica, aliás, mas tudo vale em nome da correção politicamente correta).

Há um perigo evidente quando essa tendência à assepsia atinge a arte. Alguns romances com protagonistas brancos-misóginos-de-classe-média, por exemplo, vão receber menos atenção do que mereceriam por sua qualidade literária; outros de menor qualidade serão ovacionados porque representam uma minoria. As discussões, aliás, tendem a não entrar na arte propriamente dita, permanecendo nessa superfície em que se discute com pedras, likes e compartilhamentos a “postura” desse ou daquele artista, bem como os detalhes de sua vida privada – que ninguém consegue realmente acessar, mas sobre a qual, ao mesmo tempo, todo mundo se julga apto a opinar.

Diante desse escancaramento de discursos e dessa simplificação de questões complexas que acontece todo dia na arena virtual, me parece que a arte tem o papel de ainda nos oferecer complexidade, multiplicidade, “treinamento empático”, e talvez até um pouco de incoerência. Se não acabar caindo, claro, na mesma armadilha. Em um passado recente, pareceria ridículo o artista preocupar-se com o fato de sua “mensagem” estar escancarada demais. Hoje, a “mensagem” muitas vezes é a premissa criativa e o argumento vendedor da obra, como parece ser o caso do recente filme de Laís Bodansky, Como nossos pais. Um ótimo filme, aliás, mas cujos piores momentos acontecem quando os diálogos escancaram a preocupação da obra em discutir “a vida da mulher contemporânea”.

Como artista, sinto que meu compromisso é não cair nos discursos engajados – fora da obra de arte tudo bem, mas nunca dentro dela. Não será fácil, mas precisamos ao menos tentar. 

* * * * *

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

Carol Bensimon

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