Em tradução (Georgina Burns)

13/10/2016

Por Caetano Galindo

georgina

Uma das coisas com que eu tive que aprender a lidar durante o processo de tradução/edição de Um retrato do artista quando jovem e Dublinenses foi o paradoxo do anotador. Aquela coisa de que quanto mais você anota mais parece que precisa anotar. A imensa dificuldade de decidir onde parar.

Eu tinha uma carta na manga, ou um plano oculto, que era fazer com que as notas funcionassem não só pra leitura de cada um dos livros, mas também pra ampliar o acesso ao Ulysses. Já foi meio que uma linha de orientação.

Mas nem sempre resolve, e nem sempre fica claro onde é que você já está só mostrando tuas nerdices pros leitores (tipo: ó o que eu sei!).

Um caso que me pareceu especial foi o de Georgina Burns, citada uma única vez no conto Os Mortos, que encerra Dublinenses, e sobre o qual Don Gifford, o santo padroeiro dos anotadores de Joyce, disse apenas: “não conhecida”.

O contexto é o seguinte: no meio de uma discussão sobre ópera, alguém menciona Mignon, obra menor do compositor menor Ambroise Thomas, baseada na personagem do Wilhelm Meister, de Goethe (sim: isso tudo está nas notas), que inspirou canções a vários compositores do romantismo (não: isso não está nas notas… viu como é difícil?). Aí Gretta Conroy, mulher do “protagonista”, diz que foi ouvir a ópera mas só conseguiu pensar foi na “coitadinha da Georgina Burns”.

Hoje, com Google, é fácil suplementar o trabalho de Gifford (publicado em 1980) e descobrir que ela foi uma cantora lírica da virada do XIX pro XX.

Paro aqui?

Mas por que a “coitadinha”…? Fuçando mais em sites de amantes de ópera, dá pra descobrir que o fim da carreira dela foi tristíssimo, quase indigente, depois de um começo algo brilhante.

Paro aqui?

Fuçando ainda mais, acho uma referência ao fato de que ela era casada com outro cantor, Leslie Crotty, que também teve uma vida triste, assolada pela doença e pelo alcoolismo, e que morreu em abril de 1903.

Isso pode explicar o coitadinha… Mas a DATA pode ser relevante.

Porque um dos grandes problemas dos contos de Dublinenses, e especialmente deste Os Mortos, é a tentativa de se datar a ação. Os contos parecem acontecer entre o finzinho do XIX e o começo do século XX, mas um anotador de verdade quer saber mais. Especialmente nos contos que envolvem personagens do Ulysses, dezenas de personagens do Ulysses.

E é o caso aqui em Os Mortos: o casal Conroy e as senhoritas Morkan, Julia e Kate, serão citados no romance posterior.

Mais ainda, num dado momento será revelado no Ulysses que a senhorita Kate é madrinha de batismo de Stephen Dedalus (por que ele não está presente na festa do conto? Será que a festa acontece quando ele está na França, entre fins de 1902 e agosto de 1903?) e que ele lembra dela cuidando da irmã “moribunda”.

Julia está morta em 16 de junho de 1904?

Desde quando esteve “moribunda”?

Logo no começo do conto ficamos sabendo que estamos no “tempo do Natal”, mas que já é janeiro. Ou seja, estamos entre o dia primeiro e o dia 5, já que no dia 6, dia de Reis, encerravam-se as celebrações. Mas de que ano?

O fato de as personagens discutirem a a epístola “Inter sollicitudines”, de Pio X, era a marca mais convincente. Porque o documento papal, que proíbe as mulheres de cantarem nas igrejas (cinicamente publicado no dia 22 de novembro, festa de Santa Cecília, padroeira dos músicos), é de 1903.

A menção ao estado de saúde de Julia parecia portanto ser o terminus ad quem, como se dizia antigamente. Se a ação tinha que ser nos primeiros dias de algum janeiro, agora a gente sabe que tinha que ser o janeiro de 1904.

A morte do marido da “coitadinha” da Georgina Burns só confirma esse dado.

Vale a nota?

Especialmente se você pensa que Gifford nem faz a articulação com a Julia “moribunda” do Ulysses?

Pra mim, valeu.

 

* * * * *

 

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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