Em tradução (Interlúdio mafáldico)

13/06/2018

FOTO: Unsplash

Mafalda é o nosso cachorro. Cachorra. Cadela.
Mafalda desce quatro vezes ao dia pra usar as gramas da cidade de banheiro. A Sandra sai com ela bem cedinho e pelas cinco. Os meus passeios são tardão (antes de dormir) e na hora do almoço.
Nesse, no da hora do almoço, eu invariavelmente estou aqui sentado trabalhando, e ela via de regra está deitada perto do meu pé, me impedindo de esticar essas pernas compridas que Darwin me deu. (A Mafalda é fundamentalmente um tapete a mais na casa, em termos de atividade e potencial decorativo.)
Aí eu levanto, troco de roupa e saio com ela.
Só que ela, durante essa minha levantação e trocação de roupa, jamais se coça nem se move. Fica aqui bem quieta, no mais fundo dos soninhos caninos.
Aí eu vou até a cozinha, onde pego as coisas necessárias pro passeio, e volto aqui arrastar o cachorro até a porta.
As coisas necessárias ao passeio prandial da Mafalda são basicamente quatro.
1. Guia. Claro.
2. Saquinho de papel pra catar cocô. Claro.
3. Normalmente um boné. Pra mim, claro. Por motivo de: calva.
4. O colírio. O que já não é assim tão “claro”. Mas, pra te encurtar a história, dona Mafalda é poli-esculhambada, como diz o meu irmão. Cheia das podridões patológicas. E uma delas é que ela não produz lágrimas. E a gente tem que ficar pondo colírio nela meio que de hora em hora… Em geral com o cachorro acordando apenas um olho de cada vez.
E essa passada de colírio antes de ir pro sol, no que é o passeio mais comprido do dia, é fundamental.
Eu sou meio lesado das ideias (e só piora). Então eu tendia a esquecer uma das quatro coisas, voltar aqui pro escritório e ter que passar de novo na cozinha etc…
Porque eu estou te contando tudo isso?

*

Porque traduzir poesia te coloca em imersão total.
Como as dificuldades são pontuais (transformar uma frase de 11 sílabas numa frase de 10, com todos os acentos só nas pares… fazer dois versos brancos passarem a rimar, nem que seja aos trancos!…), você anda com elas pela casa; leva pro banho; apoia no travesseiro enquanto tenta dormir.
E por causa dessa imersão você começa a meio que ver “poesia” em toda parte. Encontrar metros, rimas, assonâncias… Começa até a ficar difícil escrever em “prosa”. (Agora mesmo eu lutei pra parar de metrificar este texto.. dá pra ver, lá no primeiro parágrafo… eis o motivo da falta de um “lá”, no “lá pelas cinco”.)
Esses meses lidando com Eliot estão me deixando inteiro em versos.
E é bonito.
O mundo fica mais bonito.
E mais memóravel. Afinal, acredita-se mesmo que a primeira finalidade de coisas como rima, metro, estrutura de estrofe, era ajudar a decorar os textos.
Tudo que é bonito é mais fácil de lembrar.

*

Aí, por causa do Eliot, meus passeios ficaram mais estruturados. Peguei uma bela de uma estrutura de quatro partes, com rima nas pontas externas e uma sequência consonantal bem mimosa e simétrica: CtCH; CLR; CLR; CpCH…É verdade que tive que usar uma palavra meio rara, mas poesia tem dessas…

E agora eu não esqueço as quatro coisas pré caminhada, porque elas não são só coisas. São meu poeminha da hora do almoço.

Caetano e Mafalda

Cartucho.
Colírio?
Coleira e
Capucho!

***

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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