Em tradução (“Michelangelo”)

22/08/2018

Imagem: Solodov Aleksei/ Shutterstock.com

 

Estou há dias com uma vontade imensa de dar um abraço em Gilberto Gil.

 

Esse disco que ele acaba de lançar (Ok Ok Ok) seria uma coisa linda, uma maravilha mesmo, se lançado por qualquer um. Em qualquer momento. Mas vindo de alguém na posição dele (e que posição!) a coisa simplesmente extrapola qualquer medida.

Ou não. 

Ou no fundo só alguém na posição dele podia lançar um disco como esse. Alguém que sabe simplesmente tudo, e que não tem que provar mais NADA a NINGUÉM. Um cara que podia estar simplesmente surfando o passado.

Mas não.

Ele vai lá e me solta um disco que é fruto de toda uma vida, e da maturidade, da tranquilidade, da aquiescência que só uma vida toda, e das boas, pode dar. Mas dá a poucos.

Uma coisa bonitinha demais. O equivalente do que poderia ter sido o livro que Joyce pretendia fazer depois do Finnegans Wake. “Algo pequeno… sobre o mar”.

 

Não devo esquecer tão cedo a minha primeira ouvida do disco, passeando com o cachorro e sorrindo sozinho, limpando misteriosos ciscos que insistiam em me cair no olho, encantado, surpreso, satisfeito.

A música é linda (aquelas súbitas passagens pra tom maior que são a cara dele), as ideias são preciosas e ricas, e os versos… o tecido verbal da coisa!

 

(Ah, sim, Caetano! Lembrou que a coluna é sobre tradução??

Aliás, falei pra você que eu me chamo Caetano por causa DO Caetano? Minha mãe queria homenagear o irmão morto ao batizar o primeiro filho. Mas seu Lauro se empolgou, deixou o DNA baiano falar mais alto e [como eu já tinha um primo Gilberto?] Caetano eu fiquei.

Dona Iracema teve que esperar o segundo filho pra chamar de Rogerio.

Quase 45 anos atrás. E esses caras já não tinham que provar mais nada a ninguém…)

 

*

 

Durante as lendárias “Guerras da Rima Imperfeita”, travadas recentemente entre Curitiba e o Rio de Janeiro, o grande Paulo Henriques Britto apontava como exemplo os usos recentes da dita (rima imperfeita) na produção de Chico Buarque. Com o tempo, claro, o Britto me convenceu da validade do uso da imperfeita em tradução. O Alto da Gávea sempre vence o Alto da Glória (que é de fato o nome do bairro aqui em Curitiba.. a gente sabe ser megalômano….).

 

Mas aí, Caravanas à parte, eu estou lá ouvindo uma dada música do disco do Gil e não só ele usa primeiro uma rima forçada (a custa de distorcer a pronúncia das DUAS palavras que rimam), que funciona lindamente, como ainda mete uma outra forçadinha que não apenas evoca o uso da rima “ruim” em Eliot como na verdade usa a MESMA palavra e o mesmo truque que aparece logo na primeira página de “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”, poema cuja tradução me deu infindas dores de cabeça. E não menores satisfações, reconheçamos.

E a coisa correu tão linda, tão lisa, tão divertida e tão perfeita na mão do Gil que eu encafifei. E re-encafifei. E depois cismei um tanto.

 

Porque eu tinha proposto uma solução pro verso de Eliot que era, afinal, mais “comportada” que o original. Era decente. 

Era ok. Mas não era ok ok ok.

É normal que o tradutor tenha mais receio de correr riscos, afinal, como eu já assinalei aqui, nossa tendência é achar que o autor desvia, enquanto o tradutor simplesmente erra. Covardia, no fim. Mas fica mais fácil dar um passo mais arriscado quando há um precedente desse nível!

E a retumbante perfeição dos versos da “coisa bonitinha” de Gil me cutucou. E o livro dos poemas de Eliot ainda não foi pra gráfica, né… ainda tenho que revisar as provas…

 

Dias mais tarde, ouvindo o disco pela porrilhonésima vez, eu paro no meio da rua e mando um áudio pro Britto com uma nova proposta de solução para a rima “Michelangelo” do poema de Eliot. Aguardo ansioso a resposta. Pouco depois ele me pede pra enviar o poema todo com a alteração implantada pra ele poder ler tudo em voz alta. Mas adianta: “Rapaz, pode ser a solução.”

 

Com um sorriso gigante e quase literalmente saltitando eu chego em casa. Leitora, leitor… espere pra ver na publicação do poema. Mas se a solução te fizer sorrir, se a rima “errada” conseguir ficar “certa” e divertida como devia, o mérito não é meu. O mérito é do brilho, da desenvoltura, da perfeição de Gilberto Gil.

Eu, Caetano de segunda, só posso é cantar o privilégio de ter visto a porta aberta por ele. Ter aceitado o empurrão.

 

Na impossibilidade d’aquele abraço, seu Gil, fica com esse meu piparote virtual.

Obrigado por tudo.

 

***

 

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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