Em tradução (Sherlock Holmes)

14/09/2017

Não. Eu não estou traduzindo nada de Holmes. Só lendo.

Ou, na verdade, ouvindo. Demorei, enrolei, fingi que não estava interessado, mas acabei gastando a grana necessária pra baixar as SETENTA horas do audiobook com todos os livros de Holmes, lidos por ninguém menos que Stephen Fry.

Ô, felicidade!

Os passeios com o cão nunca foram tão misteriosos!

Eu já li toda a coleção de Holmes. Duas vezes, na verdade. Uma em português, lá pelos catorze anos, outra em inglês, lá pelos 24. Agora volto, quase aos 44.

E, por conhecer bem bem os enredos, agora posso fazer uma visita mais relaxada e, por isso mesmo, mais atenta. Posso me dar mais espaço pra pensar enquanto ouço aquela voz incrível, que faz personagens, sotaques e tudo mais…

E claro que um dos temas dessas pensâncias é tentar entender o fascínio de Holmes, até hoje o personagem mais adaptado em toda a história do cinema, por exemplo, depois de quase 130 anos de sua estreia.

Primeiro, que fique claro, os romances e os contos são muito bons. E não apenas como histórias policiais. Eles são bem escritos, bem montados, e ponto.

Segundo, Holmes, o personagem, é de fato encantador, e parece responder a algo, ou fornecer um retrato de algo, que sempre vai ter seu poder de atração (cf. referências recentes como o tributo direto em House e a reelaboração mais sutil em The Big Bang Theory). É difícil não compartilhar o pasmo e o encanto de Watson por seu “amigo e colega”.

Mas Stephen Fry, além de ler, escreveu prefácios interessantíssimos a cada livro, e num deles parte de uma teoria que tem sido cara a analistas darwinianos da literatura (sim, eles existem): a de que as histórias de super-heróis têm algo em comum com o surgimento das religiões e, portanto, um lugar bem central na nossa hierarquia narrativa. E Fry, claro, lembra muito bem que Holmes pode ter sido o primeiro super-herói.

Só que eu aqui ficava pensando era em outra coisa, mais cara a tradutores, por exemplo, e que pode ter uma relevância também gigante para explicar o sucesso de Holmes e da narrativa policial como um todo no século e pouco que se seguiu. Porque essas histórias são, em versão destilada, uma investigação sobre o que pra mim é o grande mistério, e o grande barato, de toda a prosa de ficção: a voz do narrador.

Como sabe todo mundo que se sentiu enganado ou encantado com O Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, a escolha de quem narra, de como narra, de QUANTO é narrado (e quando), é não apenas central para as histórias de Holmes, por exemplo (há ali muita narração delegada a personagens envolvidos na trama), mas tende a ser tematizada nelas. 

No final de O signo dos quatro, segundo romance em que o detetive aparece (e em tudo e por tudo algo inferior ao primeiro: Um estudo em vermelho), Holmes estabelece uma condição para dizer o que sabe à polícia: ele quer um momento com o criminoso que será preso, com calma, lá em seus famosos aposentos da Baker Street, apenas para que ele (e, por extensão, nós) possa ouvir a história por trás da parte do mistério que aconteceu antes de o crime se dar.

É claro que se trata de um truque narrativo para transmitir informação ao leitor.

Mas o fato é que não soa barato. Muito pelo contrário. Fica perfeitamente integrado à narrativa, porque, afinal, uma história de detetive é uma história que nós lemos, sobre alguém que “lê” uma história. Uma narrativa sobre a descoberta de uma narrativa. Em curso. Diante dos nossos olhos, ainda que perversamente ocultada na medida do possível.

Nós lemos os relatos do Dr. John (ou James) Watson, enquanto ele lê Holmes, que lê o mundo.

Lê o mundo. 

Escrito num chapéu, em cinzas de cachimbo, pegadas, ou numa sequência de fatos, numa história.

E esse é o MEU tipo de super-herói.

* * * * *

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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