Em tradução (línguas)

22/02/2021

 

A coluna passada, em que eu me permiti dar vazão ao meu lado ranheta, acabou tendo repercussões inesperadas, quando o grande bróder Sérgio Rodrigues aprofundou a questão toda em duas colunas na Folha de S. Paulo - "Linguisticamente" e "Linguisticamente (final)". O espírito todo dos textos do Sérgio era um “precisamos falar sobre o Kevin”, com um convite aos linguistas, aos nerds de gramática e a todos os interessados, pra que a gente converse de verdade sobre tolerância, realidade e limites no que se refere à inquestionável, perene e sempre vitoriosa mudança linguística.

Não posso fazer nadinha melhor que recomendar a leitura das colunas dele. O Sérgio é hoje, sem sombra de dúvida, a melhor e mais clara voz neste debate. Ele tem uma formação sólida em linguística, tem a capacidade de comunicação do jornalista experiente, a abordagem criativa do grande escritor e, acima de tudo, uma dose sem tamanho de bom senso. Não lembro de termos contado com uma figura como essa no debate linguístico brasileiro.

Aproveitemos.

No que me cabe, fiquei achando que ainda devo uma explanação pro meu tiozismo anti-anglicista. Afinal, eu sou tradutor do inglês. E tradutores são a linha de frente tanto no processo de abrir a língua para fórmulas e construções de outros idiomas quanto no da resistência. A gente precisa viver com o desconfiômetro ligado, de tão grande que tende a ser a nossa imersão numa cultura estrangeira.

Deixa só eu opor dois casos aqui, pra tentar ilustrar o que me incomoda nessa coisa da penetração do inglês no português brasileiro.

Eu sou da geração que viu a entrada de “resiliente” no vocabulário da nossa imprensa, por exemplo. Eu sou da geração que, antes disso, lamentava a gente não ter uma palavra que cobrisse legal o sentido do inglês “resilient”. E o busílis é bem esse.

Nesse caso específico, calhava de o inglês ter um jeito econômico de dizer um treco que, se a gente quisesse explicar, ia precisar de uma frase inteira. O “produto” importado, não tinha, pra usar uma expressão maldita, familiar também pra quem é da minha geração, um “similar nacional”. E nesses casos o empréstimo é não só previsível mas, pra todos os efeitos, bem vindo. A língua (o brasileirês) saiu enriquecida.

Mais recentemente, vi também as pessoas da geração da minha filha começarem a estender o sentido do nosso verbo “julgar”, pra fazer ele dar conta de construções inglesas como “don’t judge me”. Tive cá meus arrepios, num primeiro momento. Mas, vem cá, trata-se de novo da mesma coisa. A gente não tinha como dizer isso. E é útil, em trocentas situações. Se no caso anterior a gente criou uma palavra nova, a partir do modelo anglo, aqui era até menos complicado: o verbo já existia, era só questão de lassear um tanto o elástico da gola.

Isso é um lado da equação.

Outro é aquele que eu representei no texto da semana passada pela construção “democracia é sobre direitos coletivos”, ou algo que o valha. A gente tem “trata-se de”, “diz respeito a”, “consiste de”, “é uma questão de”, “refere-se” a… Todas essas construções, cada qual com seus matizes, dão conta direitinho de dizer a mesma coisa. Não há um motivo claro pra importação, que assim fica me parecendo algo da esfera do cabotinismo, da ostentação, do pseudo-chique. É como dizer “oh my god” num diálogo brasileiro.

É desses empréstimos que eu desgosto.

E é desses que eu acho que os tradutores têm sim obrigação de defender o brasileiro escrito. Não se trata de questão de vida ou morte. Não se trata de questão de certo e errado. Não se trata de questão de afirmação política.

É mera questão de elegância.

 

***

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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