Em tradução (o tradutor está nu)

23/06/2017

Ah, a desesperada fome de cliques.

Pois não é que nem? Não. Se você por acaso veio aqui esperando rir das pelancas deste tradutor de meia-idade, pode ir tirando o cavalinho da chuva. É tipo "metafórico", ok? Pra uma exposição de práticas pessoais (nada íntimas, por outro lado).

É que vira e mexe por aí me perguntam coisas sobre tradução literária. Então resolvi dar umas respostas aqui (imitando a Luisa Geisler, que fez coisa parecida por cá). Ei-las.

1. Caveat. Eu não sou o melhor exemplo. Primeiro porque tenho as minhas fuleirices. Demasiadas. Segundo porque sou tradutor "de horas vagas" (a universidade é o meu ganha brioche). E terceiro porque pra começar eu comecei tarde. Minha primeira tradução foi publicada quando eu já tinha trinta. (Hoje tenho 43.)

2. Mas agora eu estou com 33 livros publicados (com mais 5… CINCO!) já entregues. Então alguma coisa eu aprendi. Pois vejamos. Palpites estritamente pessoais.

1. (De novo um? De novo um. Eu que mando aqui! [reserve essa ideia]) Qual a maior recomendação que você daria a alguém que quer fazer tradução literária?

Leia. Muito. EM PORTUGUÊS. Depois leia mais. EM PORTUGUÊS. Depois leia o tipo de repertório que ainda te falta. EM PORTUGUÊS. 

A maior de todas as coisas é repertório, flexibilidade, criatividade na tua língua. O texto com que o leitor vai lidar é o texto em português. E é esse que tem que estar chique, refinado, engraçado, lírico, criativo, diferente (conforme cada caso). Claro que é, tipo, bem recomendável se aprofundar o máximo possível na língua de que você pretende traduzir (repertórios e tal, igual). Mas a ordem de relevância, pra mim, é essa.

2. Como você trabalha?

Se é um livro que eu nunca li, eu tendo a não ler antes. Com o tempo descobri que essa primeira leitura não gera tantas vantagens (a tradução vai acabar se compondo de várias leituras: não é que eu vá entregar a primeira!), e ainda tira um tesãozinho básico de ir "lendo" o livro enquanto eu traduzo.

Então é sentar e começar.

Eu gero uma primeira versão corrida da tradução em que eu tendo a não deixar NADA por resolver. Tem gente que vai saltando as coisas cabeludas pra mexer na volta. Não eu. A minha primeira versão é toda "resolvida".

(P.S.: Aqui eu sou rápido. Três-quatro páginas de livro por hora é um ritmo bom pra prosa de nível legal de sofisticação. Eu gosto assim. Me deixa feliz. E nem tenho tanta escolha… cf. "horas vagas"…)

Terminada essa versão eu volto pra um pente fino de qualidade de texto. Na medida do possível sem olhar pro original (daí a importância de não deixar pendências na primeira versão).

O bom aqui é ler em voz alta. Ou no mínimo no ritmo de uma leitura em voz alta. (Ou seja, aqui, proporcionalmente, eu sou mais lento…)

Nessa segunda passada eu vou marcando num documento à parte coisas que precisam talvez ser revistas (ou às vezes "uniformizadas") no texto todo. E isso gera uma terceira leitura, agora dando buscas no texto todo.

Se essa terceira teve muita cabeludice, às vezes uma quarta passada mais rápida vem a calhar.

3. Como você se relaciona com os revisores?

(É aqui que entra, e se relativiza, aquele "eu que mando"). Olha. A tradução leva o meu nome. Mas só quem nunca trabalhou de verdade tem nostalgia de autoria. No caso da Companhia das Letras, o texto (entre preparadores, revisores, editores, departamento de produção etc…) pode passar por umas seis ou sete mãos diferentes depois de sair do meu computador. E essas pessoas invariavelmente melhoram tudo.

Daí eu adorar o trabalho de todas elas. Daí e do fato de eu ter plena consciência das minhas incapacidades. Preciso especialmente das preparadoras (elas são quase sempre mulheres) pra me impedir de asnar demais.

Por isso eu tendo a entregar as traduções com uma carta para a preparadora. Onde me ponho à disposição pra qualquer dúvida e já sublinho as coisas que ainda podem precisar de atenção, ou as coisas que eu sei que precisam ser "defendidas". 

O trabalho é coletivo, bebê.

4. Você usa ferramentas de tradução?

Não. Se você está falando tipo de programas de memória de tradução, não. E meio que ninguém usa, na literária. 

5. Quais recursos você usa?

Eu ando totalmente carbono zero. Sem querer tirar as mãos do teclado.

Prefiro originais em pdf, e-pub, mobi. Uso dicionários online como o Merriam-Webster. Uso demais a Wikipédia (e falo uiquipédia). Uso o Houaiss online (pago, nesse caso). E coisas mais pontuais como o Urban Dictionary (que andou perdendo seriedade, no entanto). E curto bastante usar o Google tradutor (AAAAh! Parem de contratar esse homem!) só pra ver se as sugestões deles podem variar o meu vocabulário tipo "padrão"… (a gente vicia em certas palavras/construções).

Mas o Google, propriamente dito, acaba sendo a maior das fontes. Ou meta-fonte, porque é ali que você encontra sites e dados mais arcanos. Saber googlar (e tão pouca gente sabe de verdade), eis a grande arte.

E tem outra "ferramenta", que são pessoas. Consultas.

Minha mulher, Sandra M. Stroparo, sabe de montes de coisas que eu ignoro. Minha filha conhece outros mundos e outros tempos (tipo, "sério que andam usando PISAR como sinônimo de 'ser foda'?"). Meu irmão, Rogério Galindo (que traduz aqui pra "casa" também), é tipo alter-ego tradutório. Já abusei da boa fé do Reinaldo Moraes pra saber do submundo dos anos 1970. Mas acima de tudo, conto com don Paulo Henriques Britto (que além de tudo tem um exemplar do Oxford English Dictionary!) pra me tirar de qualquer esparrela.

Tanto pra explicar quanto pra palpitar. Tanto pra test-drive quanto pra correção. Essa "rede" acaba tornando o trabalho coletivo ainda antes de ele sair daqui de casa.

6. Último conselho?

Nunca abra os livros que você traduziu. Vai ter erros. Vai ter comidas de bola. A esferofagia é risco profissional. Você vai descobrir que fez coisas que sempre abominou. Vai descobrir que se arrepende de coisas que sempre recomendou.

Mas deixe que os leitores julguem!

(E abra a primeira página do próximo projeto!)

* * * * *

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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