Entre o ordinário e o extraordinário

01/08/2016

Por Arthur Nestrovski

2570413296_824b44581a

Ilustração: DangerPup

O livro se chama Histórias naturais, mas a epígrafe (de Heráclito) avisa logo: “A natureza ama esconder-se”. Ou seja, de naturais essas histórias não têm nada, muito embora num senso profundo seja mesmo sobre essa contradição que se equilibram, entre o ordinário e o extraordinário. E assim como o título esconde potências sob um rótulo aparentemente neutro, também os personagens, variadamente modestos, sem aparentes pretensões, revelam aos poucos camadas de experiência gloriosa ou trágica, tudo sob o controle de uma prosa, ela mesma, controlada e modesta.

Com o mesmo sentido de ordem e uma calma geométrica, quase como um tratado de história natural, o livro se divide em duas partes. A primeira (“Livro I: Coleção de Papéis”, fazendo trocadilho bilíngue com papers científicos) traz seis contos; a segunda (“Livro II: Histórias Naturais”) se divide em cinco seções, cada qual com cinco textos curtos. São todos “ficções”, como define o próprio autor na capa. No total, então, seis partes: um primeiro Livro (dividido em seis) e um segundo dividido em cinco, cada um subdividido em cinco também.

Ninguém deixou de notar, em resenhas já publicadas, as luzes de Borges e Calvino, que colorem os textos de alusões. Mas a voz do autor, aqui, tem acento próprio, forte o bastante para resistir às companhias que ele mesmo convidou. Forte o bastante, na verdade, para entrar no acervo mais íntimo de cada leitor, lado a lado com esses e outros nomes de tamanha envergadura. É uma voz serena, como só poderia ser para alguém tão cuidadoso e maduro no trato do mundo; mas doídamente serena, como não poderia não ser, para quem se abre com tanto afeto à experiência dos outros. Desse ponto de vista, aliás, o controle formal ganha outro sentido. Menos como Borges e Calvino -- se quiserem, mais como Nabokov —, a superfície regrada da prosa vira um veículo para transmitir, justamente, aquilo que é sofrido demais para ser tratado de outro modo.

Vistas assim, as histórias mais longas, como a antológica novela do dublê de datilógrafo, que abre o livro, a do velho ator em fim de carreira (publicada numa Piauí de alguns meses atrás), a do mapa de Gêngis Khan, ou a da busca do desaparecido na ditadura não são tão diferentes das 25 ficções curtas, umas mais, outras menos memoráveis, mas que vão todas do tudo ao nada, ou vice-versa, numa página. Em especial, a quarta seção, “Dos Demônios” parece ecoar, como música de câmara, as texturas mais sinfônicas do “Livro I”. E o último texto de todos consegue, afinal, com exemplar discrição, consagrar um amor entretramado em livros, modesta gloriosa esperança nesse vale de lágrimas.

O que nos leva de volta ao começo, àquele conto longo, ou novela, sobre o dublê de datilógrafo, em filmes sobre escritores, que afinal se torce sobre o próprio autor escrevendo essa história, num fictício filme narrado em prosa. O livro mereceria comentário muito maior, mas aqui basta dizer que esse texto, por si, faz de Marcílio França Castro um dos melhores autores da literatura brasileira do nosso tempo. Ninguém pode prever o passado, diria algum personagem dele, muito menos o futuro, mas há boas razões para imaginar que esse conto há de ser lido enquanto houver livros, leitores, literatura: um clássico.

* * * * *

Arthur Nestrovski é Diretor Artístico da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). Violonista e compositor, também escreveu vários livros para crianças, entre eles Histórias de avô e avó, O livro da música, Viagens para lugares que eu nunca fui e Agora eu era (todos publicados pela Companhia das Letrinhas).

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog