Erupção infernal

23/05/2022

 

No domingo acordei assustada com a previsão de frio para a semana: teria “neve”, “erupção polar” e “chuva congelante”. Vi neve apenas uma vez, mas ela é velha conhecida: de livros, filmes, poemas, desenhos animados, fotos, imagens impressionantes de casas, cidades, montanhas, campos todos cobertos por essa camada branca, uma “série branca”, como descreve um poema de Louise Glück, espécie de algodão que transforma a paisagem colorida numa brancura silenciosa e monótona. Em geral essas representações não dão a ideia do frio para quem não conhece o fenômeno, não trazem a atmosfera daquele “espírito de inverno” dos versos de Wallace Stevens.

Cresci no Rio de Janeiro, mas sempre ouvi meu pai contar da neve em sua infância, que nada tinha de poética. Em Lages, no interior de Santa Catarina, nos anos 1950, a neve estava mais ligada ao frio e à dificuldade de atravessar o dia-a-dia com recursos apenas paliativos: colocar uma bolsa de água quente na cama antes de dormir, não abrir as torneiras para a água não congelar. Nada daquele excesso branco das representações.

Mas se o termo “neve” dá pano para manga, “erupção polar” e “chuva congelante” são expressões que nunca tinha ouvido. “Chuva congelante” vem da meteorologia e tem sentido literal: chuva que congela quando chega ao chão. “Erupção polar” não faz parte do campo semântico da área, parece ter sido criado no ambiente das redes: de fato é mais poético porque usa uma palavra da geologia para designar o frio súbito que vem e irrompe, no caso, não das profundezas da terra, mas da atmosfera: da mistura de um ar úmido com correntes polares. Em suma, uma massa de ar polar vindo da Antártica vai se misturar com um ciclone extratropical – que traz umidade e intensificação dos ventos – e disso teremos um maio invernal.

Sei que as previsões mais drásticas são para o sul, São Paulo fica só com o rescaldo, mas quando o termômetro marca 5 graus aqui, sinto mais frio do que em qualquer outro lugar em que já estive. Lembro de uma cena de Recife-Sevilha, de Bebeto Abrantes, documentário sobre João Cabral de Melo Neto. A filha do poeta conta que, quando moravam na Suíça, o pai subia a calefação para 30 graus e justificava dizendo que ele era pernambucano e que dentro de sua casa ele queria sentir calor, mesmo em pleno inverno europeu.

Em meus primeiros anos paulistanos, fui em busca de um aquecedor “tropical”, que é um objeto pesado que esquenta um pouco ao redor e faz a gente passar os dias ao lado dele sentindo cheiro de óleo e transportando-o pela casa; a vontade que tenho é ecoar a fala de Cabral: no meu lar, queria sentir o calor carioca, queria poder subir essa temperatura para a casa dos 30.

Na contagem regressiva para a “erupção polar”, decidi dar uma caminhada pela Av. Paulista na tarde de domingo em busca dos últimos raios de sol. Perto do IMS, virei na Bela Cintra, porque minha filha queria ver de perto um urso de pelúcia gigante inflado que estava plantado na calçada diante de um espaço chamado “Housi – sua casa por assinatura”. Tudo aquilo já era meio estranho, até que vi uma cena à primeira vista normal, mas que logo se revelaria insólita.

Um caminhão parado fazendo alguma obra, um buraco no chão, algumas mangueiras grossas de tecido, vários homens trabalhando em pleno domingo.  Dessas “mangueiras” – ainda não consegui palavra melhor para descrever, mas eram de um tecido que permitia que ela se adaptasse à água: delas saía uma água que ia direto para o meio-fio. Já reparei que em São Paulo é muito comum ter água passando pelo meio-fio. Normalmente água limpa, transparente. Mas no domingo era uma água cor de piche, espessa e muito quente, pelando, com um vapor que parecia estar colado nela e ia formando uma espécie de muro entre a rua e a calçada. E, daquela água, do vapor nebuloso e quente daquela água, erguia-se um odor fortíssimo de esgoto. Pronto, estavam despejando uma quantidade imensa de esgoto que ia correndo como umas enguias pelo meio-fio na velocidade dos carros numa espécie de “erupção infernal”. Tentei caminhar mais rápido e, quando vi, a água já tinha atravessando a rua seguindo pela Bela Cintra até onde a vista alcança. Tentei virar a esquina na primeira quadra, mas aquela língua preta já tinha dobrado ali e seguia com seu vapor pestilento na direção da Consolação. Tive que passar por cima da água, dando um salto em meio ao vapor escaldante, que impregnava tudo, cabelo, roupa, pele.

Os carros passavam ameaçando dar um banho de esgoto nos pedestres e o cenário de um simples passeio dominical de repente tinha se transformado numa espécie de ficção científica: parecia um filme do Batman, mas bastante real pelo odor que tinha tomado o bairro, pelo calor que evaporava em forma de uma nuvem espessa nebulosa (nos filmes não sentimos o frio da neve, mas também não sentimos o cheiro de esgoto). Parecia uma descida ao hades. Ou uma “erupção infernal”.

Nosso tempo tem sido literal demais. E foi uma espécie de lugar comum o que pensei na hora: aquilo era a imagem do país, o esgoto tomando as ruas, soltando um vapor espesso muito real e pegajoso, espalhando a fome, a miséria, a violência, a ruína. Temos muita coisa para fazer esse ano.

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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