Eu não sei surfar

24/09/2020

Imagem por Kelly Sikkerma

 

  1. Escrevo porque não sei o que fazer de mim. Porque as inquietações difusas pedem palavras que as nomeiem e para que aquilo que ameaça se dissolver possa se amalgamar.
  2. Escrevo porque não sei o que é deus. Porque oscilo entre a magia e a matéria e as palavras pertencem a esses dois mundos, dos quais me aproximo ainda mais quando as encontro. Quando escrevo, a oscilação e a ignorância se renovam e crio perguntas mais definidas.
  3. Escrevo porque meu espírito não se contém de entusiasmo e transborda palavras para tudo: a panela, o guarda-chuva e o pavor.
  4. Escrevo porque meu corpo precisa de uma disposição – pôr-se na direção de – para fora.
  5. Escrevo porque amo tanto os escritores, que sinto necessidade de imitá-los, de competir com eles, de superá-los.
  6. Escrevo porque a impotência diante dos males do mundo chama por nomes.
  7. Escrevo porque quero ser lida, admirada e sonhada.
  8. Escrevo porque sonho tanto e sonho tanto porque escrevo.
  9. Escrevo porque a realidade é uma palavra que inventaram para designar a circunstância e porque, escrevendo, o real a supera.
  10. Escrevo porque preciso mentir.
  11. Escrevo porque, como diz Anne Carson, a metáfora é um deslize, um furo mental e preciso desse erro para desobedecer melhor.
  12. Escrevo porque meu corpo, mais do que minha mente, ainda acredita em coisas melhores, em um porvir.
  13. Escrevo porque não sei surfar.
  14. Escrevo porque, às vezes, tenho a sorte de não ser eu a escrever, mas minha mão.
  15. Escrevo porque minha mãe escreveu um diário depois da guerra e porque agora ela está morta.
  16. Escrevo porque pertenço a um povo cujo país foi, durante muitos séculos, a própria escritura.
  17. Escrevo porque gosto das pessoas.
  18. Escrevo porque não sei escrever e só aprendo escrevendo e porque escrever é impossível ou sisífico.
  19. Escrevo porque preciso me colocar em risco, morrer e me expor, até que descasquem toda minha pele.
  20. Escrevo porque, durante a escrita, descubro palavras desconhecidas, frases que nunca pronunciaria, pessoas que agem diferentemente de mim.
  21. Escrevo porque quero ser outra, porque quero me desconhecer e ficar distante dessa subjetividade repetitiva.

 

***

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

Noemi Jaffe

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

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