Fábrica de imagens

15/12/2021

A paisagem com a queda de Ícaro, de Pieter Brueghel (c. 1558)

 

Um dos conceitos mais fascinantes no campo das relações entre poesia e imagem é a figura da écfrase. Trata-se de um texto que descreve uma imagem. O recurso passou por muitas definições e foi se transformando conforme seus usos, desde a mais antiga écfrase de que se tem notícia (a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada, de Homero), até os muitos experimentos feitos pela poesia moderna – de William Carlos Willians a Sylvia Plath, passando por Murilo Mendes.

Num estudo sobre a écfrase (na revista eLyra), Joana Matos Frias chama atenção para a prevalência, no conceito original, do visualizável sobre o visível. Ou seja, caberia destacar o modo como o texto dá a ver (em detrimento do objeto visto), ou sua capacidade relacional (e não só a possibilidade de “recolher imagens”). O que em última instância nos levaria a pensar no aspecto inerente ao processo da poesia, sua capacidade de produzir imagens.

Compartilho com o leitor duas écfrases interessantíssimas que parecem dialogar entre si. A primeira, de W.H. Auden, de 1938, em tradução de José Paulo Paes, sobre a tela “Paisagem com a queda de Ícaro”, de Brueghel (que abre esta postagem). O poema tem duas estrofes; a primeira mais meditativa sobre a natureza do sofrimento humano; a segunda focada na tela do artista flamengo.

 

Musée des Beaux Arts

No que respeita ao sofrimento, nunca se enganavam 
Os Velhos Mestres: quão bem lhe compreendiam
A humana posição; de que maneira ocorre
Enquanto alguém está comendo ou abrindo uma janela
      [ou somente andando ao léu;
Como, quando os de idade aguardam reverente, apaixonadamente
O milagroso nascimento, deve sempre haver
Crianças que não desejam particularmente que aconteça, patinando
Num lago junto à beira da floresta:
Eles jamais esquecem
Que mesmo o pavoroso martírio deve prosseguir seu curso
De qualquer modo num canto, nalgum lugar desasseado
Onde os cães levam sua vida canina e o cavalo do algoz
Raspa o traseiro inocente de encontro a uma árvore.

No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo volta as costas
Pachorrentamente ao desastre; o arador bem pode ter ouvido
A pancada n’água, o grito interrompido,
Mas para ele não era importante o malogro; o sol brilhava
Como cumpria sobre as alvas pernas a sumir-se nas águas
Esverdeadas; e o delicado barco de luxo que devia ter visto
Algo surpreendente, um rapaz despencando do céu,
Precisava ir a alguma parte e continuou calmamente a velejar.

 

A segunda écfrase, de 1959, é de Sylvia Plath (que foi aluna de Auden). O poema remete a outra tela de Brueghel, “O triunfo da morte” (imagem que fecha esta postagem). A tradução é minha.

 

Duas visões de uma sala de cadáveres

1.
No dia em que ela visitou a sala de dissecação,
Viu quatro homens deitados, escurecidos como peru queimado,
Já meio retalhados. Um vapor avinagrado
Dos tonéis da morte impregnava o ar.
Os rapazes de jaleco branco começaram a trabalhar.
A cabeça do cadáver a cargo dele estava deformada
E ela não conseguia discernir quase nada
Em meio aos destroços de crânio e couro gasto.
Um pedaço de fio amarelado atava os restos.

Em redomas de vidro, fetos com nariz de caracol pairam e brilham.
Ele arranca o coração e entrega a ela como se fosse uma relíquia partida.

 

2.
No cenário de Brueghel, feito de matança e fumaça,
só duas pessoas estão cegas para a tropa de carniça:
Ele, boiando no mar de cetim azul da saia
Dela, canta virado para o ombro nu
Da amada enquanto ela se inclina
Pra ele segurando uma partitura,
Ambos surdos ao violino nas mãos
Da cabeça da morte que ameaça seu canto.
O casal de Flanders está radiante; isso por enquanto.

A devastação, retida na tinta, ainda preserva esse mínimo espaço
insano e delicado no canto inferior direito da tela

 

Os dois poemas trabalham com uma espécie de “pedagogia do olhar”: dão a ver o detalhe, aquilo que está escondido. A tela de Brueghel citada por Auden traz em primeiro plano o arador trabalhando e um barco de luxo a velejar, mas o título remete à queda de Ícaro (o “desastre”) que precisa ser localizada na tela (uma perna dentro d’água no canto inferior direito?).

Já na tela de Brueghel com a qual Plath dialoga, o desastre, pelo contrário, está em todo canto (afinal, é “o triunfo da morte”), mas Plath procura ler o que está escondido em meio à carnificina, o que resiste a todas as coisas: o amor – encarnado no espaço de respiro dos amantes (também no canto inferior direito da tela) ou, na sala de dissecação, no gesto do amante que entrega a ela o coração arrancado de um cadáver. Em tempos mortíferos, talvez a única forma de seguir vivendo.

 

O triunfo da morte, de Pieter Brueghel (c. 1562)

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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