Flip 2023 | Leia um trecho de “À margem da margem”, de Augusto de Campos

Entre 22 e 26 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “À margem da margem”, de Augusto de Campos, artista homenageado da Flip 2023.

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O FLAUBERT QUE FAZ FALTA

 

Tão evidente é a posição de Flaubert no limiar da literatura moderna — Flaubert, o estilista, que elevou a prosa ao nível da arte poética; Flaubert, “o pai da prosa realista”, vomitando de convicção, envenenado com o envenenamento de sua personagem, Ema Bovary —, que não me parece justificável reavivar o centenário de sua morte senão através de um Flaubert menos notório, embora espantosamente vivo. Este não é o Flaubert dos frisos históricos — A Tentação de Santo Antônio ou Salambô. Não é também o de Madame Bovary ou A Educação Sentimental, por admiráveis que sejam, evidências que são, indiscutíveis, do criador do romance moderno. Não é nem mesmo o de “Um Coração Simples” — o mais perfeito dos impecáveis Três Contos — a “palavra justa” de onde saíram as Três Vidas de Gertrude Stein. Mas o Flaubert menos estimado de Bouvard e Pécuchet, a obra póstuma, publicada em 1881, que desconcertou os seus contemporâneos e que os próprios Mallarmé e Valéry desentenderam, o primeiro vendo no seu tema uma “aberração estranha”, o segundo, registrando, lacônico, em seu diário: “livre assez bête”.

 

É este o Flaubert que mais nos faz falta. Uma falta que não é apenas espiritual, mas também material, no caso brasileiro, de vez que a obra, competentemente traduzida por Galeão Coutinho e Augusto Meyer e publicada há muitos anos pela Editora Melhoramentos, nunca mais foi reeditada, distanciando-se, pois, do convívio dos nossos leitores e dos nossos escritores.

 

Mal compreendido em sua época, menosprezado entre nós como obra pouco relevante, Bouvard e Pécuchet esconde atrás desse título apagado e insosso, que sugere o nome comercial de alguma firma, o mais ambicioso projeto de Flaubert, o seu “testamento”, a sua “vingança moral”, enfim, o que ele chamou de “enciclopédia crítica à maneira de farsa”, ou mais cruamente, de “enciclopédia da estupidez humana”. De todos os seus textos é o que mais aponta para o futuro e para o nosso tempo. Sobre ele convergiu a atenção de dois dos maiores criadores da literatura do século XX, Ezra Pound e Jorge Luis Borges. E é para ele que, a despeito da hostilidade de Sartre, parece dirigir-se a nova crítica francesa, de Roland Barthes a Philippe Sollers, admirada um tanto retardatariamente e precedida, como sempre, por um poeta, Raymond Queneau, com seu prefácio de 1947 a uma edição de Bouvard e Pécuchet, incluído na primeira edição de Bâtons, Chiffres et Lettres (1950).

 

Já em 1922, ano da publicação de Ulisses e o primeiro a contar do centenário do nascimento de Flaubert, o norte-americano Ezra Pound publicava, em francês, na revista Mercure de France, o seu estudo pioneiro, “James Joyce et Pécuchet” — jamais referido pelos flaubertistas franceses —, estabelecendo o nexo crucial entre a derradeira obra de Flaubert e aquela que seria o marco divisório do romance contemporâneo, o Ulisses de Joyce. Em seu trabalho, Pound avançava uma tese atrevida: “Se bem que Bouvard e Pécuchet não passe pela ‘melhor coisa’ do mestre, pode-se sustentar que Bovary e A Educação não são mais que o apogeu de uma forma anterior; e que os Três Contos perfazem uma espécie de sumário de tudo o que Flaubert havia conquistado escrevendo os seus outros romances Salambô, Bovary, A Educação e as primeiras versões de Santo Antônio”. E concluía: “Bouvard e Pécuchet continua o pensamento e a arte flaubertianos, mas não continua essa tradição do romance ou do conto. Pode-se vislumbrar na ‘Enciclopédia crítica em farsa’, que tem como subtítulo ‘Defeito de método nas ciências’, a inauguração de uma forma nova, uma forma que não teve precedente. Nem Gargantua, nem Dom Quixote, nem Tristram Shandy lhe forneceram o arquétipo”.

 

Trinta e dois anos mais tarde, em 1954, o jornal argentino La Nación estampava dois artigos de um escritor que o mundo ainda não conhecia, porque a França ainda mal o conhecia: Jorge Luis Borges fazia a defesa de Flaubert e de sua última obra em “Reivindicação de Bouvard et Pécuchet” e “Flaubert e seu destino exemplar”. No primeiro desses artigos, depois incluídos no livro Discusión (1957), afirmava: “As negligências, os desdéns ou liberdades do último Flaubert desconcertaram os críticos; creio ver nelas um símbolo. O homem que com Madame Bovary forjou o romance realista foi também o primeiro a rompê-lo”. No segundo, vinculava ao “destino exemplar” do romancista o de Mallarmé (cujo epigrama “o propósito do mundo é um livro” teria fixado uma convicção de Flaubert) e “o do intrincado e quase infinito irlandês que teceu o Ulisses”.

 

Mas o que vem a ser, afinal, esta obra que une Pound e Borges em comum admiração e que a eles se afigura tão revolucionária? Depois de advertir que a história de Bouvard e Pécuchet é enganosamente simples, assim a resume Borges: “Dois copistas (cuja idade, como a de Alonso Quijano — o Quixote — se acerca dos cinquenta anos) travam estreita amizade; uma herança lhes permite deixar o emprego e fixar-se no campo; aí ensaiam a agronomia, a jardinagem, a fabricação de conservas, a anatomia, a arqueologia, a história, a mnemônica, a literatura, a hidroterapia, o espiritismo, a ginástica, a pedagogia, a veterinária, a filosofia e a religião; cada uma dessas disciplinas heterogêneas lhes reserva um fracasso; ao cabo de vinte ou trinta anos, desencantados (a ‘ação’ não ocorre no tempo mas na eternidade), encomendam ao carpinteiro uma escrivaninha dupla e se põem a copiar como antes”.

 

Estes últimos fatos não chegaram a ser narrados num capítulo: estão registrados em diversos resumos ou planos encontrados entre os papéis do escritor. A obra ficou inconclusa. Aos projetos do último capítulo se adicionam oito manuscritos com 2186 folhas, hoje guardados na Biblioteca de Ruão. Constituem aquilo que Maupassant chamou de “Sottisier” (traduzo: Tolicionário) e pertencem ao segundo tomo de Bouvard e Pécuchet, conforme atesta uma carta de Flaubert, de 1880: “meu segundo volume já tem três quartos prontos e será quase todo composto de citações”.

 

As edições de Bouvard e Pécuchet costumam trazer, além de um esboço do capítulo final, a parte mais ordenada dos manuscritos — o Dicionário das Ideias Feitas — acompanhada de um reduzido Catálogo de Ideias Chiques e de uma pequena mostra das citações recolhidas por Flaubert. Assim também a edição brasileira.2 Hoje, porém, conhece-se melhor o dossier do segundo volume da obra. Geneviève Bollème, que publicou, em 1963, uma bela antologia da correspondência de Flaubert — Préface à la Vie d’Écrivain — e, em 1964, um estudo global — La Leçon de Flaubert —, nos daria dois anos depois, em Le Second Volume de Bouvard et Pécuchet, um inventário completo dos documentos reunidos pelo escritor para a sua “Enciclopédia”.

 

 Em suas anotações, esclarece Flaubert como pretendia que terminasse o primeiro volume de Bouvard e Pécuchet e o que deveria ser o segundo. Os dois amigos, que antes acreditavam nos ensinamentos dos livros e dos tratados, a tal ponto se desiludem, que passam a copiar, ao acaso, tudo o que encontram: manuscritos ou impressos, velhos recortes de jornal, anúncios, livros rasgados, cartazes, cartas. Depois de muito copiarem, sentem a necessidade de uma classificação. Ordenam, pois, o seu trabalho, colocando sob rubricas as citações, de acordo com o estilo (médico, agrícola, literário, político, oficial etc.). Elaboram o Dicionário e o Catálogo já referidos. Um dia cai-lhes nas mãos o fragmento de uma carta escrita pelo médico local ao prefeito — um relatório confidencial explicando que Bouvard e Pécuchet são dois imbecis inofensivos. “Que fazer?” — indagam um ao outro. “Nada de reflexões. Copiemos.” Flaubert registra: “O monumento se completa. Igualdade de tudo. Do bem e do mal. Do belo e do feio. Terminar pela visão dos dois simplórios debruçados sobre a escrivaninha, copiando”.

 

Na correspondência do escritor — uma admirável estética fragmentária — há numerosas referências ao Dicionário das Ideias Feitas e ao seu “prefácio” (que seria todo um livro). Trata-se de antigo projeto, a que ele já alude, aos 28 anos, em setembro de 1850, numa carta a Louis Bouilhet, e que seria completado pela documentação extensiva do “Sottisier”, como mais tarde ficou esclarecido. Ao prefácio-livro, que se deduz seja Bouvard e Pécuchet, seguir-se-ia, pois, o segundo tomo, que compreenderia, além do Dicionário, um repositório de citações de autores anônimos, desconhecidos ou célebres, unidos pelo denominador comum da tolice. Um dicionário de frases feitas, embutido num tolicionário documental enciclopédico. O autor desapareceria: “Seria necessário que, em todo o livro, não houvesse uma só palavra de minha autoria e que depois de lê-lo as pessoas não ousassem mais falar com medo de dizer instintivamente uma das frases que lá se encontram” (carta a Louise Colet, dezembro de 1852).

 

Tal projeto nutriu e atormentou o pensamento de Flaubert por toda a sua vida. “É preciso estar louco e triplamente frenético para empreender um livro como esse!”, exclama numa carta de 1872 a Mme. Roger des Genettes, com as mesmas dúvidas que fariam Mallarmé indagar a Valéry, em 1897, a propósito de Um Lance de Dados: “Não lhe parece um ato de loucura?”. Ainda em 1872, ano em que inicia os preparativos de Bouvard e Pécuchet, confidencia à sua sobrinha Caroline que o plano do livro lhe parece “soberbo”, mas que é “um empreendimento esmagador e espantoso”. A Mme. des Genettes afirma que, “nesse tempo de avacalhamento universal”, medita numa coisa em que exalará a sua cólera. “Vomitarei sobre meus contemporâneos o desgosto que eles me inspiram, ainda que tenha que romper o meu peito.” A Turguêniev desabafa: “A estupidez pública me submerge” e anuncia a preparação desse livro onde vai “cuspir sua bile”, ou, como repete a seguir a George Sand, “cuspir o fel que o sufoca”, “purgar-se”. Mas tal como ocorrera com Madame Bovary, quando, ao descrever o envenenamento de Ema, um imaginário gosto de arsênico na boca o leva a vomitar, aqui o seu envolvimento é também total. “Este livro é diabólico! Tenho medo de ter o cérebro esgotado… a estupidez dos meus dois simplórios me invade”, escreve à sobrinha, em 1874. E a George Sand, no mesmo ano: “É preciso estar absolutamente louco para empreender um tal livro. Temo que ele seja, por sua própria concepção, radicalmente impossível”. Por outro lado: “Se eu conseguir, será, falando seriamente, o ápice da Arte”. No ano seguinte, volta ao tema. A George Sand: “Empreendi um livro insensato”. A Mme. des Genettes: “Bouvard e Pécuchet me obcecam a tal ponto que eu me transformei neles! Sua estupidez é a minha e eu morro dela”. Em 1877 retoma o projeto, interrompido desde abril de 1875. “Creio que ainda não se tentou o cômico de ideias”, observa, mais ameno, à sua interlocutora. A Zola explica: “Ele não terá significado a não ser por seu conjunto. Nenhum trecho, nada de brilhante, e sempre a mesma situação, cujos aspectos é preciso variar”. A Mme. Brainne: “O meu objetivo (secreto): aturdir o leitor de tal forma que ele enlouquecerá. Mas meu objetivo não será alcançado, pela simples razão de que o leitor não me lerá; terá adormecido desde o começo”. No ano derradeiro, escreverá a Mme. des Genettes: “Sabe a quanto montam os volumes que tive que absorver para os meus dois simplórios? A mais de 1500! Meu dossier de notas tem oito polegadas de altura”. Flaubert, que chegara a duvidar da possibilidade do projeto, duvida também da sua comunicabilidade. “Será ele ao menos legível?”, interroga a Zola em 1878. E confia a Auguste Sabatier: “O que eu faço talvez não tenha nome em nenhuma língua”.

 

Se Bouvard e Pécuchet já desconcerta pela neutralidade da linguagem, sem qualquer brilho aparente, pelo anti-heroísmo dos personagens, e pela reiteração dos movimentos, sucessos e fracassos, o Dicionário sequestra em definitivo a ação e os personagens e nos põe em contato direto com o tema da imbecilidade (que ambiguamente confunde leitor, autor e personagens, fictícios colecionadores dos verbetes). Exemplos: BUDISMO — “Falsa religião da Índia” (Definição do Dicionário Bouillet). CATOLICISMO — Teve uma influência muito favorável sobre as artes. HOMERO — Nunca existiu. Célebre pelo seu jeito de rir. “Um riso homérico”. TRABALHADOR — Sempre honesto, quando não provoca tumultos. TROVADOR — Bom tema para um relógio de pêndulo. LOURAS — Mais quentes que as morenas (Vide Morenas). MORENAS — Mais quentes que as louras (Vide Louras). NEGRAS — Mais quentes que as brancas (Vide Morenas e Louras). RUIVAS — Vide Louras, Morenas e Negras. Mas, ainda aqui, há a mão do escritor, redigindo os verbetes que atribui à elaboração dos dois simplórios, que se desimbecilizam, se flaubertizam, à medida que, segundo o próprio Flaubert, desenvolvem “uma faculdade lamentável”, a de “ver a estupidez e não a tolerar mais”. 

 

No “Sottisier”, nem essa forma de intervenção é permitida. É um texto entre aspas. Somente citações, pedras de toque da tolice humana, a que não se furtam nem mesmo aqueles que Flaubert mais admira, como Voltaire. Tolices conceituais. Opiniões a respeito de “grandes homens”. Sobre Galileu: “Se ele tivesse escrito apenas em língua latina, em vez de inflamar os espíritos em língua vulgar, nada lhe teria acontecido” (De Maistre). Sobre Dante: “Todo o Dante é uma moxinifada” (Chandon). Sobre Shakespeare: “O próprio Shakespeare, grosseiro como era, não deixava de possuir suas leituras e seus conhecimentos” (La Harpe). “Esse idiota do Shakespeare!” (Voltaire). Nessa linha, em A Arte Gentil de Fazer Inimigos (1890), o pintor Whistler compilaria um “tolicionário” da crítica à sua obra, O sr. Whistler e seus Críticos — Um Catálogo, com esta epígrafe: “Julgai-os pelo que sai de suas bocas”. Tolices da linguagem. Estilo literário: “Eu polia deliciosamente meu sapato esquerdo sobre o qual deixei tombar uma lágrima de arrependimento” (X. de Maistre). Joias da imprensa: “Opõe às tempestades da vida o guarda-chuva da indiferença e sustém as calças do triste presente com os suspensórios de um mais risonho porvir” (Le Figaro). Estilo científico: “As mulheres do Egito se prostituíam publicamente aos crocodilos” (Proudhon). Etc. Etc. Etc. “Ad infinitum”.

 

Ezra Pound vê sobretudo na segunda parte de Bouvard e Pécuchet (o “Dicionário” e o Álbum ou “Sottisier”) a ligação entre Flaubert e Joyce: “De 1880 ao ano em que foi começado o Ulisses ninguém teve a coragem de fazer o ‘sottisier’ gigantesco, nem a paciência de investigar o homem-tipo, a generalização mais geral”. Joyce — no entender de Pound — completou o grande “tolicionário”: “Num só capítulo ele descarrega todos os clichês da língua inglesa, como um rio ininterrupto. Num outro capítulo, enfeixa toda a história da expressão verbal inglesa, desde os primeiros versos aliterados (é o capítulo no hospital onde se espera o parto da senhora Purefoy). Em um outro, temos as manchetes do Freeman’s Journal desde 1760, isto é, a história do jornalismo; e ele faz tudo isso sem interromper o curso de seu livro”. Joyce, em suma, teria reencetado o processo iniciado em Bouvard e Pécuchet, levando-o a um grau de maior eficiência, de maior solidez.
 

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